ancestralidade

Artigo: O legado de meus ancestrais

ROSA FRANCO - Músico, compositor, intérprete e cantador de sonhos (@rosafrancof)

Não há como fugir da ancestralidade. Se há algo sobre o que não temos controle, são os lampejos ancestrais. Mesmo os que adquirem certos hábitos para melhor se inserirem no establishment trazem tal lampejo. Aliás, foi do caldeirão de etnias chamado Brasil que resultou minha família afro-ameríndia à qual tenho o maior orgulho de pertencer. A música, as artes em geral, são alguns dos reflexos desse lampejo ancestral milenar. Muitos esquecem que a África é um continente, não um país, e dela vieram povos diversos.

Lembro dos grandes lampejos da tia Candinha e da minha mãe, por meio das histórias que contavam do meu bisavô, proveniente do Congo, e da trajetória até o Brasil, primeiro no Nordeste e, depois, no Rio Grande do Sul. Eram verdadeiras griots e nem sabiam que traziam em si essa bagagem milenar. Fui formado e lapidado no meio desse povo e lampejos de lutas e batalhas na verdadeira acepção da palavra, ancestralidade forte. Assim, aprendi com eles, que o verbo cria, dá origem, como até constatei na Bíblia.

Permita-me o leitor partilhar um pouco das muitas histórias que me geraram. Afinal, minha história é tão plural que prefiro falar de nós, digo, de todo o povo que me antecedeu. Uma delas é Eulina Pereira da Rosa, minha mãe, nascida em 1931 na área rural de Alegrete (RS). Décima segunda filha de uma família de 13 irmãos. Como se diz aqui no sul, "cruza" de meu avô, filho do vô Congo e de minha avó, uma índia linda da região de Corrientes, na Argentina. Em minha mãe está sintetizada grande parte dos povos originários do Brasil e sua luta.

Minha avó materna morreu precocemente. Os filhos foram "adotados" pelos "cumpadres" do meu avô. Viraram-se fazendo trabalhos em troca de cama e comida. Minha mãe, não suportando tal situação, aos 13 ou 14 anos, fugiu e veio parar em Porto Alegre. Ali, inspirada por Deus e pelos seus orixás, como ela dizia, lutou pela vida, amamentando, criando filhos de famílias abastadas da capital. Foi faxineira, doméstica e aposentou-se como chefe de cozinha de um lar de menores em Viamão, na região metropolitana. Era uma instituição de meninos infratores ligada à antiga Febem.

Nunca vi aquela negra de um metro e sessenta se queixar. Antes, dizia-nos sempre: "Vamo, vamo, vamo, vocês podem!" Isso foi inesquecível para mim e decisivo na minha formação de homem preto, artista, músico. Ela ia muito a um grande cortiço urbano, na João Teles, nos bairros Bonfim e Rio Branco, onde morava sua irmã, minha dinda. Essa região, na época, era chamada de colônia africana. Imaginem. No coração de Porto Alegre, havia uma pequena África a pulsar.

Recordo, quando assisti ao filme Charles, que retratava a vida do músico e cantor Ray Charles. As cenas eram muito iguais às do nosso cotidiano. Aquela correria entre as roupas a secar nos varais no meio do terreiro e as negras velhas, aos gritos, diziam: "Saiam daí, vão sujar as roupas da família do doutor fulano de tal..." Como nossas histórias ou aventuras e desventuras são mesmo muito parecidas.

Meu dindo e meu pai eram músicos e exerciam outras profissões paralelas. Lembro-me de que, quando viajavam, quase sempre, eram as mulheres que ficavam a administrar a família. E lá iam eles a acompanhar muitos artistas, alguns de renome nacional: Francisco Egídio, Cauby Peixoto, Elizeth Cardoso, Lupicínio Rodrigues, Elis Regina, Jamelão e outros que nem lembro mais.

Meu pai, antes de entrar para a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT), foi, além de músico, estivador, trabalho árduo e duro. Hoje, fico a pensar: de onde esse povo tirava forças para apenas ter o direito de sobreviver? Sou fruto, como disse, dessa etnia tão plural e tão rica, que nunca fugiu de peleia nenhuma para sobreviver e lutar. Sinto-me como a ponta de um iceberg em relação a todos meus ancestrais que me fizeram chegar até aqui. Salve a terra mãe África, berço da civilização. Salve todos aqueles que lutaram e lutam por si e por nós pela reparação efetiva. Salve a mulher preta, mestiça, brasileira, universal, sangue dos sangues desta nação.

Esse maravilhoso hábito de contar histórias de vida, gritante coincidência, pois eram os mesmos lampejos dos pretos velhos de contar as histórias do seu povo. Dia virá em que esses lampejos, como os daquelas velhas lamparinas, hão de se traduzir e desembocar na luz maior da equidade social, da grandeza, da sabedoria, enfim. Que nossos terreiros — mentais, espirituais, materiais — sejam guias da nossa caminhada. Oxalá, que assim seja.

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