política

Artigo: A democracia resiste

JOSÉ HORTA MANZANO - Empresário e blogueiro

Há sinais de recuperação da democracia ao redor do globo. Embora tímidos, acanhados e quase imperceptíveis, apontam para o lado positivo. Vamos a alguns deles.

A China, entre os países importantes, é o que tem o regime mais controlado e hermético, apesar de ser mais autoritário que comunista. Na comparação, a vida na Rússia — país onde até o vocabulário do cidadão é escrutado pra vigiar que nunca associe o nome Ucrânia à palavra guerra - parece solta e jovial.

Pois foi essa China que nos deu, no fim do ano passado, inesperada mostra de que o rigor das regras sociais pode ser afrouxado pela pressão popular. Quase três anos de confinamento estrito por motivo de covid estavam fazendo mal à economia e, sobretudo, à população. Parece que a transmissão dos jogos da Copa do Mundo deu origem à ira popular.

A visão de estádios cheios de gente sorridente e sem máscara foi a gota d'água. Manifestações de indignação se alevantaram nas metrópoles chinesas, com coro de "Fora, Xi Jinping!" - afronta insuportável. Poucos dias bastaram para o rigoroso regime de covid zero ser abolido.

No Irã, faz meses que a população manifesta seu desagrado com o rigor da ditadura dos aiatolás. O triste destino de uma jovem que morreu enquanto detida pela polícia da moralidade pelo motivo de não usar direito o véu obrigatório foi o estopim da revolta popular. Dia após dia, a obstinada e corajosa juventude iraniana manifesta nas ruas sua insatisfação com o regime.

A dura repressão já deixou centenas de cadáveres, mas a ira da população tem se mostrado à altura da mão pesada do governo. Em mais de 40 anos de regime teocrático, é a primeira vez que o povo se queixa com tal intensidade. Pode bem ser o primeiro passo para a queda da ditadura.

Nos Estados Unidos (EUA), o campo antidemocrático liderado por Donald Trump sofreu profundo revés nas eleições de mid-term. Quando todos já se resignavam de assistir a uma arrasadora onda de eleitos trumpistas, o eleitorado democrata deu um sobressalto e limitou as perdas. A volta do bilionário à Presidência ficou um pouco mais problemática.

Na Itália, a primeira-ministra Giorgia Meloni vem se saindo melhor que o figurino. Ao assumir a chefia do governo, abjurou Mussolini e o fascismo, regime pelo qual havia demonstrado simpatia no passado. Juntou-se aos demais países da Otan e deu seu apoio ao envio de armas para que os ucranianos defendam seu território contra o invasor russo. Em uma palavra, a Signora Meloni civilizou-se. Fez desaparecer o lado assustador da extrema-direita. Caminha na boa direção.

No Brasil, as últimas semanas de 2022 e as primeiras deste ano foram turbulentas. Jair Bolsonaro, quando presidente, passou anos prevenindo o distinto público de que, se não fosse reeleito, se insurgiria contra o resultado das eleições. Numa preparação do que estaria por vir, chegou a avisar ao corpo diplomático lotado em Brasília a vulnerabilidade de nossas urnas eletrônicas. Quando as eleições chegaram e o capitão foi derrotado, forte apreensão tomou conta da população não fanatizada. E agora? Será que o perdedor nos condenará a regredir a uma era de botas na calçada e brucutus no asfalto?

Em outros tempos, talvez a pólvora tivesse assumido o protagonismo, e o país tivesse de novo mergulhado nas trevas. Numa mostra de que o horizonte nacional já está desanuviado de aventuras desse tipo, Bolsonaro emburrou, enclausurou-se no palácio e lá ficou dois meses — calado para o público externo, mas certamente ativíssimo na preparação do sonhado golpe.

O resto, todo o mundo sabe. Bolsonaro fugiu, e o 8 de janeiro viu o exército da loucura em ação. Quebraram vidros, mas não quebraram a lealdade de uma maioria de fardados responsáveis. Derrubaram peças de arte, mas não derrubaram a Lei Maior. Subiram no alto de palácios, mas não atingiram o topo do poder. O Brasil balançou, mas não cedeu.

Agora, o espetáculo que nos proporcionam um ex-presidente homiziado no exterior, invasores rastaqueras na cadeia e financiadores acuados traz uma lufada de ar puro a nossa nação. É a prova de que, na hora agá, nossa democracia não se rompeu.

Mais Lidas