Política

Artigo: A questão militar

André Gustavo - Jornalista

Nos anos cinquenta, século passado, a empresa United Fruit operava em Honduras, Guatemala, Nicarágua, El Salvador, Costa Rica, Colômbia e várias ilhas no Caribe. Produzia mais lucros em dólares que a maioria das que trabalhavam dentro dos Estados Unidos. O império era obra de um homem só: Sam Zemurray, judeu nascido nas cercanias do Mar Negro que fugiu para a América, numa época de perseguição religiosa. Edward L. Bernays, também judeu, se vangloriava de ser o pai das relações públicas. Os dois juntos promoveram a banana como item indispensável da nutrição do norte-americano e derrubaram governos que colocaram dificuldades para a expansão do negócio.

A Guatemala foi a principal vítima. Naquele país, um golpe militar apoiado pela CIA derrubou o governo progressista de Jacobo Árbenz. Os motivos para o golpe de Estado são conhecidos no Brasil. O então presidente daquele país foi acusado de planejar e facilitar a entrada do comunismo soviético no continente. A obra de relações públicas espalhou o medo. Os militares fizeram o resto. Um discreto vendedor de enciclopédias, que tentava a vida naquele país, assistiu a tudo e percebeu que qualquer avanço político na América Latina exigiria a reforma dos exércitos. Seu nome ficou famoso depois: Ernesto Che Guevara.

Para ter uma ideia da abrangência da ação de promoção comercial e relações públicas, a cantora brasileira Carmem Miranda (a Chiquita Bacana dos filmes) fez sucesso enorme com seus chapéus de cachos de bananas que divulgavam as virtudes da fruta. Enquanto ela cantava, a United Fruit faturava. Mas a questão, além da operação de relações públicas, é a participação das Forças Armadas na política do país. No exemplo da Guatemala foi um desastre. O Exército se alinhou aos grupos de direita norte-americanos e, juntos, promoveram o golpe que derrubou o governo democrático.

Essa é a velha questão que reaparece no Brasil de hoje. E vai e vem ao longo da história política brasileira desde a Proclamação da República, que, na verdade, foi um golpe de Estado militar contra o Império, apoiado por agricultores revoltados com o fim da escravidão. A República, com raízes positivistas (ditadura republicana na definição de Augusto Comte), nasce protegida pelos militares. Esse é o ponto.

Na Espanha, após a morte do ditador Francisco Franco e do acordo político chamado de Pacto de Moncloa, o primeiro-ministro Felipe Gonzalez decidiu, em 1982, reformar as Forças Armadas. Seu ministro da Defesa, Narcis Serra, promoveu profunda reforma no setor. De início, acabou com o conceito de inimigo interno. No Brasil, o inimigo interno é o comunismo, desde a intentona de 1935, quando, segundo o relato oficial, dentro dos quartéis, recrutas foram atacados dormindo. Esse episódio passa de geração para geração nos bancos escolares militares.

Acabar com o inimigo interno é bom começo, mesmo porque o comunismo no século 21 não tem nada a ver com o comunismo soviético dos anos trinta. O maior país comunista hoje, que é a China, pratica um capitalismo de Estado muito peculiar. O mundo está cheio de milionários chineses. A União Soviética se transformou em Rússia, que hoje é um Estado autoritário, chefiado por um autocrata solitário e cercado de agentes secretos que prendem dissidentes. As Forças Armadas não devem ser lançadas contra os nacionais. Ou seja, não é razoável opor brasileiro contra brasileiro.

O segundo item bem trabalhado pelos espanhóis foi rever o ensino militar. Modificar os conceitos políticos, abrir as escolas militares aos civis e incentivar militares a estudar em escolas civis. Ou seja, oxigenar o ensino militar com ideias e conceitos originários de outros polos de conhecimento. Nos Estados Unidos é comum militares de variados níveis frequentarem escolas civis. E o fazem fardados sem qualquer constrangimento. É fato corriqueiro, que não chama a atenção de ninguém.

O Exército brasileiro é muito grande. Pode ser reduzido, com maior utilização de inteligência artificial e tecnologia. As Forças Armadas precisam ter mais rapidez, maior mobilidade e capacidade de responder a problemas externos. Até hoje, por exemplo, não se sabe a origem do petróleo que sujou as praias do Nordeste brasileiro. A Marinha não conseguiu determinar de onde o óleo vazou. As fronteiras brasileiras são vulneráveis. O tráfico de drogas e armas não respeita os limites do país e invade o território nacional sem constrangimentos. As Forças Armadas não conseguem impedir essa invasão.

A tradição política brasileira é varrer desavenças para baixo do tapete e esquecer o problema. Foi assim com a anistia. Agora, há a oportunidade de modificar a maneira de agir das Forças Armadas. A reunião do presidente Lula com os ministros militares pode ter sido o primeiro passo.

 


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