Jorge Fontura - Advogado e professor
O poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto, com a licença de ser o engenheiro dos versos, era prodigioso em neologismos. Exímio conhecedor da América do Sul, onde foi embaixador em diversas capitais, inventou a expressão "vizinhos invizinhos", ao retratar as relações históricas de rivalidades e de desconfianças entre Brasil e Argentina.
Com o advento da integração regional, no entanto, já nos governos iluministas de Alfonsin e Sarney nos anos de 1980, tudo pareceu reconformar-se, com avanços emulados não só em comércio. Foi o início da era Mercosul, tempos de percepção acerca da importância da aliança estratégica bilateral, com a superação da hipótese de conflito e de sua decorrente corrida armamentista. Superava-se também o mero palavrório dos discursos afetivos, da retórica de herdeiros ibéricos que todos somos, e lançaram-se projetos concretos e inovadores.
Mais que amizades, interesses, sem pejos, a partir da ideia-força do livre comércio, mas bem mais além da Taprobana, a incluir cooperação nuclear, com projetos comuns de submarinos e de aviões. E como desdobramento das novas relações de confiança, a plena adesão à governança hemisférica sob a égide do direito internacional, com fina sintonia jurídica, desde o espaço atlântico e suas riquezas marinhas até a imensidão antártica com seus tremendos desafios geopolíticos.
Se, por um lado, a alternância de governos de distintas famílias políticas e ideológicas — tanto na Casa Rosada quanto no Palácio do Planalto — produziu descompassos em série, por outro lado não houve rupturas ou sequer ameaça delas, com a convicção de ser a aliança Brasil-Argentina cláusula pétrea de política de Estado. De continuidade do Estado nacional, não mero ajuste transitório e ocasional de governos simpáticos. Se a política internacional tem sido constante repertório de conflitos a revelar outros tantos vizinhos invizinhos, com a recente militarização até do Japão e da Alemanha, a beligerância não é a tônica do Cone Sul da América Latina.
Nesse quadro, a simbologia de viagens inaugurais de chefes de Estado é algo que decorre naturalmente, como a ida do presidente Lula da Silva a Buenos Aires. Da mesma forma, é certo que o próximo presidente argentino, e há eleições em outubro de 2023, também deverá vir a Brasília em seu primeiro compromisso externo, como inércia ditada pelo peso da história e pela fatalidade da geografia.
De resto, o prestígio às relações regionais e à integração, como manda a Constituição federal em seu artigo quarto, parágrafo único, a par da inovadora atuação do vice-presidente Geraldo Alckmin a exercer o Ministério de Indústria e Comércio de forma cumulativa, são fatores desde logo positivos. Como tem ressaltado o chanceler Mauro Vieira nessa renovada dinâmica, a valorização da integração regional pelo Brasil é linha de política externa a ser celebrada, a impactar o subcontinente como um todo.
Blocos econômicos representam a mais elevada criação da recente história das relações internacionais. Destinam-se a sociedades que vão amadurecendo e cultivando a autoestima coletiva, portadoras de senso do desenvolvimento comum, assente na certeza de vantagens inarguíveis do comércio livre, com sociedades plurais e adeptas da convivência pacífica entre os povos.
Devendo fundar-se em tratados que garantam democracia e segurança jurídica aos participantes, a bem da fluidez do comércio, blocos econômicos permitem o desenvolvimento harmônico entre vizinhos, sem infringirem-se as leis internacionais de livre concorrência da OMC.
Não há como mitigar, no entanto, o fato de ter estado a integração do Cone Sul sempre à mercê de governos presidencialistas, com suas variâncias e rompantes. Presidencialismos mercuriais, é certo, de monopólio de condução de política externa, em rota constante de possíveis colisões.
Malgrado tudo, superadas tantas intempéries, com solução pacífica de controvérsias, mesmo em caso de complexidade única julgado pelo Tribunal Arbitral comum em 2012, a integração mercosulina de mais de 30 anos sobrevive. Baseada no eixo Brasil-Argentina, signatários majoritários e fiadores do Tratado de Assunção e fundada na realidade do comércio, de importantes investimentos bilaterais e de trocas relevantes de setores produtivos qualificados. Sem espaço para retrocessos.
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