Brasil

Artigo: Carta para um Brasil que já deu certo

" A memória dos anos difíceis deve ser também preservada. As atrocidades e os erros são lembranças doloridas, mas são parte de uma verdade"

Querido Brasil,

Nasci de você há anos-luz. Meu berço nem de longe era esplêndido. Conheci a pobreza e muitas mazelas mais. Mas herdei de ti a teimosia. Essa sim, inabalável. Posso dizer que venci na vida. E que não vivi o suficiente para ver a sua vitória completa. Escrevo do porvir, de algum lugar bom. Escrevo para que não te esqueças. A memória dos anos difíceis deve ser também preservada. As atrocidades e os erros são lembranças doloridas, mas são parte de uma verdade. Assim é.

No seu álbum, estão os anos de chumbo, a ditadura, a fome, a miséria, as calamidades, a corrupção, a vergonha, a falta de educação.

Falo sobretudo de um tempo, o meu por essas bandas, em que o machismo ainda era um tapa na cara e enterrava mais corpos de mulheres do que a gente podia contar diariamente.

Falo de um tempo em que a democracia, para alguns malucos e criminosos, era ameaça. E o medo se transfigurou em uma realidade dissonante, na qual a verdade era um detalhe indigesto, que não se queria conhecer, sequer provar.

Houve um 8 de janeiro com imagens tristes, quando os Três Poderes da República foram invadidos e usurpados.

Era um tempo no qual o dinheiro movia só o pico da montanha. O rico ficava mais rico e pesava insuportavelmente sobre uma base cada vez mais pressionada para virar nada. Também me lembro que esse conjunto de gente fadado a virar nada era teimoso — sabia que podia ser tudo caso se rebelasse. E se rebelou e venceu muitas vezes. Chamavam isso de resiliência. Eu nomeio como revolução.

Os pretos, pobres, periféricos. Os gays, as lésbicas e todos aqueles que não se sentiam pertencentes ousaram atentar contra o tal gênero, uma gaiola que para nada servia, a não ser às convenções e aos preconceitos. Chamamos isso de liberdade, de corpos e almas.

Vivi com você um tempo de muitas vergonhas e, talvez, a maior delas seja ter visto o roubo da terra, da natureza, da comida farta, da água descontaminada e limpa, da vida, da dignidade dos indígenas — os povos originários que sempre cuidaram de suas florestas, de sua exuberância, potência e grandeza. Essa é uma dívida que nunca será paga e crime que jamais prescreverá, desculpe."

Escrevi as linhas acima para um Brasil que deu certo. Talvez, algum dia isso aconteça. Desconfio que minha geração não verá a quantidade de mudança boa que precisamos. O que não podemos esquecer é a caminhada que estamos trilhando. Hoje somos um grande teatro do absurdo. Que todas essas atrocidades sejam passado um dia. É o meu desejo.

 


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