EDITORIAL

Visão do Correio: O direito à florestania

"Temos que parar com essa fúria de meter asfalto em tudo. Nossos córregos estão sem respirar, porque uma mentalidade de catacumba, agravada com a política do marco sanitário, acha que tem que meter uma placa de concreto em cima de qualquer corregozinho, como se fosse uma vergonha ter água correndo ali. A sinuosidade do corpo dos rios é insuportável para a mente reta, concreta e ereta de quem planeja o urbano. Hoje, na maior parte do tempo, o planejamento urbano é feito contra a paisagem. Como reconverter o tecido urbano industrial em tecido urbano natural, trazendo a natureza para o centro e transformando as cidades por dentro."

Esse puxão de orelha nas cabeças "petrificadas" ou "concretadas" das cidades é uma das muitas reflexões apresentadas pelo ativista socioambiental Ailton Krenak — um dos mais destacados defensores dos povos indígenas e da reintegração do ser humano à natureza —, em seu mais recente livro, que tem o sugestivo título Futuro ancestral. Na obra Ideias para adiar o fim do mundo, de 2019, Ailton Krenak atacou, com argumentos contundentes, a insistência da humanidade em se dissociar da natureza, vivendo perigosamente, até mesmo sob risco de extinção. "A humanidade não reconhece que aquele rio que está em coma é também nosso avô", criticou, exemplificando com desastres socioambientais e dando nome aos nossos tempos: "Antropoceno".

Agora, com o novo livro, ele dá sequência às suas incômodas reflexões, contrapondo os conceitos de cidadania e florestania. Argumenta que o ser humano precisa buscar o seu direito à florestania. Não basta ter cidadania, no melhor sentido do termo, e viver sufocando florestas e cursos d'água e também se sufocando no concreto e na cegueira da destruição dos recursos naturais, que obviamente, se volta contra nós. "Os humanos estão aceitando a humilhante condição de consumir a Terra. O capitalismo quer um mundo triste e monótono, em que operamos como robôs, e não podemos aceitar isso", dispara Krenak.

O primeiro capítulo do livro, Saudações aos rios, já começa assim: "Os rios, esses seres que sempre habitavam os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui. Estamos em todos os lugares, pois em tudo estão nossos ancestrais, os rios-montanhas, e compartilho com vocês a riqueza incontida que é viver esses presentes", vai alertando.

É simples concordar com ele. Basta olhar para o passado ou consultar os livros de história: o berço de todas as civilizações foi sempre às margens dos cursos d'água. Incapazes de preservar, os humanos vão literalmente sugando tudo até o fim e depois migram para "vampirizar" outras fontes vitais. Ailton Krenak segue advertindo que não há outro caminho para a humanidade a não ser buscar sua ancestralidade, preservar e cultivar florestas, cuidar da água e parar de se amontoar nas selvas de pedra.

A nova obra surge em momento bem oportuno, quando o Brasil volta a respirar bons ventos com a volta de Marina Silva ao Ministério do Meio Ambiente, após a "boiada" destrutiva do governo Bolsonaro. E, principalmente, com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, sob o comando de Sonia Guajajara, uma legítima liderança ancestral, vinda da Terra Indígena Arariboia, território com mais de 400 mil hectares de Floresta Amazônica, no Maranhão, um lugar sagrado onde a natureza ainda é plena e o povo guajajara absoluto em sua originalidade e comunhão com a natureza.

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