CRISTOVAM BUARQUE — Professor emérito da UnB
Em 2003, no primeiro ano do governo Lula, o Ministério da Educação construiu um labirinto para mostrar as dificuldades no dia a dia de uma pessoa que não sabe ler. Dentro de uma grande caixa, o labirinto armado em diferentes locais permitia ao visitante seguir o percurso de uma pessoa analfabeta em busca de um endereço onde havia possibilidade de emprego. Ao ver a placa onde a palavra "entrada" onde estava escrita com letras misturadas, "ntearad", o visitante tinha seu primeiro choque de incompreensão que sente o analfabeto diante de texto escrito e do fato de que reunir letras só forma palavra para alfabetizados. Alguns diziam ter passado por isso durante dias no estrangeiro e imaginava como seria viver permanentemente assim.
A partir da entrada, grupos de visitantes eram reunidos na primeira sala, escura, onde um alto-falante dizia: "Você está em busca de chegar a um endereço onde há empregos disponíveis. Escolha o ônibus que sirva para seu destino." A voz silenciava e uma luz mostrava na parede em frente o fluxo de ônibus chegando, com letras misturadas indicando o rumo para onde seguiam.
Depois da perplexidade, o grupo caminhava à sala seguinte, onde a voz dizia: "Parabéns, você teve coragem para perguntar qual era o ônibus ao destino que busca, e sorte para encontrar pessoa gentil que lhe indicou o veículo certo. Agora que você chegou aonde desejava, basta encontrar a rua". Nesse momento, a luz focava as placas com os respectivos nomes, todos com letras e símbolos misturados.
A voz insistia: "Se você sabe o nome da rua para onde quer ir, basta ler o nome escrito. Se não lembra, basta ler o papel onde sua amiga escreveu o endereço". A luz iluminava um pedaço de caderno com palavras escritas em símbolos misturados. Era possível sentir a tensão dos visitantes. Muitos percebiam que soltar não é libertar, o livre precisa do direito de se locomover e também de ler o mapa para onde quer ir.
Na sala seguinte, a voz dizia: "Imagino o quanto você está cansado. Descanse um pouco. Se tem dor de cabeça, leia "farmácia" e peça um remédio. A luz ilumina a caixa e a bula de um remédio escritas em símbolos. O visitante imagina a sensação de tomar uma droga sem saber se é aquela de que precisa.
Na outra sala, a voz dizia: "Parabéns pela persistência e esforço, você chegou. O emprego o espera. Basta ler um pequeno trecho em que vão testar seu conhecimento". A luz mostra um texto simples com letras misturadas. Percebe-se que a viagem foi improdutiva, ali não há emprego para quem não sabe ler. Entra-se na última sala, onde a voz diz: "Não desista. Você é brasileiro, deixe seu depoimento sobre como foi o seu dia".
Em frente, uma imensa impressão digital na parede. Ao lado, bandeiras do Brasil na qual o lema "ordem e progresso" está escrito com letras misturadas ou em idioma estrangeiro. Porque, diferentemente de quase todas as outras no mundo, nossa bandeira foi criada em 1889, com o lema "Ordem e Progresso" escrito, mesmo sabendo-se que 90% dos brasileiros adultos de então eram analfabetos. Hoje, 134 anos depois, essa proporção caiu, mas o número absoluto cresceu para 10 milhões a 12 milhões, que ainda hoje pensam estar diante da nossa bandeira, mesmo que o lema esteja "rj#? ???Zqwls??k", ou "order and progress", ou "educação é progresso".
A porta abria e o visitante era tomado por sentimentos de raiva e vergonha, alguns com os olhos lacrimejando. A sensação é de imoralidade social: percebe-se que o analfabeto é torturado durante todo o tempo em que está acordado. O analfabetismo é como um chicote incansável maltratando o cérebro de quem não sabe ler. Por isso, a erradicação do analfabetismo de adultos é uma questão de direitos humanos.
Mas, historicamente, salvo raros esforços isolados, o Ministério da Educação tem se dedicado muito mais ao ensino superior, deixando para cada município o papel de promotor do fundamental direito humano à alfabetização: ao ensino superior recursos e esforços nacionais, à alfabetização recursos e esforços locais. Tanto que o labirinto do analfabetismo só durou o primeiro ano da gestão do presidente Lula.
É como se a Abolição da Escravatura tivesse sido deixada sob a vontade, a responsabilidade e os recursos dos municípios, esperando por 5.570 Leis Áureas, quando cada prefeito desejasse. Felizmente, não se fez assim com a escravidão, nem com a tortura, mas é feito com o analfabetismo. Essa espécie de tortura-simultânea-à-escravidão, em pleno século 21, afeta milhões de brasileiros e compromete o Brasil inteiro em seu labirinto.
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