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Artigo: Similitudes entre o futebol, a arte, a inteligência artificial e o direito

Roberta Ferme Sivolella - Juíza auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça. Doutora em direito processual e pós doutoranda em direito público pela UERJ

Era apenas o início de 2022. Fragmentos de um dos calendários Maias havia sido encontrado em uma pirâmide na Guatemala. A descoberta foi classificada como impressionante em sua tecnologia de escrita e arte — apenas um spoiler do que estava por vir ao longo do ano.

Poucas semanas depois, a AlphaFold divulgava o Banco de Dados gerado pela Inteligência Artificial capaz de atingir, em 18 meses, tarefa inócua há 50 anos: analisar e catalogar mais de 200 milhões de proteínas para o diagnóstico de doenças e criação de medicamentos. A disponibilização dos dados a pesquisadores de todo o mundo integrava um componente democrático ao estigmatizado mundo dos algoritmos, em verdadeira mudança de seu "estado da arte" social.

A democracia também voltaria ao Brasil a atenção do mundo no segundo semestre de 2022. À arte do futebol e da Copa, somavam-se as eleições e suas múltiplas manifestações sociais, necessárias ao reconhecimento e à redistribuição, como já diria Fraser. Doutra parte, a grande problemática das fake news traria sérias preocupações ao longo de todo ano, com a linha tênue entre a necessidade de limites à circulação de dados, e o temor de se criarem mecanismos de censura ou alienação. Mais uma vez, a inteligência artificial, por meio de sua tecnologia BlockChain, aliando o Big Data com a possibilidade de criptografia de dados, atuou como potencial segurança em face dos mass media e seus aparatos sinóticos.

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Não demoraria muito, veio a percepção de que o "não-direito" e o limbo normativo poderiam levar a prejuízos indeléveis a direitos fundamentais caríssimos aos nossos tempos. Incursões à LGPD, a elaboração de normas infralegais (vide o Provimento 135/2022 da Corregedoria Nacional de Justiça), além da construção de jurisprudência constitucional para os hard cases gerados por neófitas situações algorítmicas também fizeram a tônica deste ano. Prejuízos econômicos no atraente mercado das bitcoins demonstraram que o Direito deve atuar como partícipe e atento artesão, na elaboração do que aqui já foi denominado de estado da arte social.

Entre tréguas aos debates inflados proporcionadas pela arte da Copa do Mundo e à junção de povos historicamente oponentes no fair play do esporte, fomos expectadores de debates acerca dos limites da liberdade de expressão, da igualdade, e do respeito às instituições democráticas. Em matéria de igualdade de gênero, relatório elaborado pela ONU Mulheres em 2022 apontou a existência de grandes desafios envolvendo a inclusão socioeconômica das mulheres imigrantes e refugiadas sob o contexto da guerra da Ucrânia. A inteligência artificial e a tecnologia, mais uma vez, abririam uma porta de diagnóstico e adoção de medidas voltadas a políticas inclusivas e cooperativas.

No Brasil, o Protocolo Integrado de Prevenção e Medidas de Segurança, voltado à violência doméstica praticada em face de magistradas e servidoras se transformaria em Diretriz (número 8) estabelecida pela Corregedoria Nacional de Justiça. O desenvolvimento do sistema SERP, visando modernizar e simplificar os procedimentos relativos aos registros públicos de atos e negócios jurídicos, incorporou a exitosa campanha "Sinal Vermelho", capitaneada pela Associação de Magistrados Brasileiros, sob a presidência de uma mulher.

E, por falar em arte, encerramos o ano com a notícia da morte do "Rei Pelé". A essa altura, já fica mais factível identificar as similitudes entre este evento e o que ele representa no intenso ano de 2022. Fazendo do esporte uma arte, o atleta elevou o futebol a um espetáculo decodificador dos anseios de uma sociedade, ávida por novas estratégias e formas de expressão. Tal como a inteligência artificial, que funciona em sistema de erros e acertos, o atleta foi se amoldando às experiências e aprimorando suas técnicas. Como artista, não temeu ousar ou se afetou com eventuais intempéries. Como profissional, não hesitou em retroceder, analisar e ponderar o razoável em prol do coletivo, tal e qual o Direito, ao regular as noveis relações postas.

Volta-se, por fim, ao calendário Maia que iniciou esta narrativa. Diz-se que o antigo povo, visionário, já indicava em seus cálculos um dia não contabilizado nos ciclos lunares. Era denominado de o "dia fora do tempo", voltado à reflexão, à análise e à escolha do "legado" a impulsionar as ações do novo ciclo.

Talvez 2022 tenha sido o "ano fora do tempo". Um tempo de balanços e de inovações, que mostrou que liberdades e contenções necessárias somente estarão em equilíbrio, se formos partícipes ativos nessa transição. Que entre as perdas e avanços, e entre o Direito, arte e tecnologia, o nosso senso de justiça nos impulsione em 2023 para um novo ciclo, cujo legado poderá ser único.