CLAUDIO LOTTENBERG — Presidente do Conselho da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein e presidente institucional do Instituto Coalizão Saúde (Icos)
Um dos temas de saúde que mais ocuparam os holofotes nos últimos anos é o da cannabis medicinal. Avançamos muito nessa discussão, tanto na pesquisa, com estudos que comprovam a utilidade do canabidiol (CBD) para atenuar uma série de enfermidades, quanto na gestão propriamente do setor, com a flexibilização de marcos regulatórios para garantir o acesso a esses tratamentos. A trajetória recente da cannabis medicinal ajuda a compreender um problema maior e muito mais profundo, que provoca enormes instabilidades em nosso sistema de saúde. Refiro-me à excessiva judicialização do setor em nosso país.
O Brasil precisa, urgentemente, de soluções para reduzir a quantidade de contenciosos relacionados à área da saúde que chegam aos tribunais, e as agências reguladoras, como a Anvisa, podem ser aliadas importantíssimas. Vejamos então o caso da cannabis. Nosso país não produz medicamentos que contêm CBD, mas os médicos brasileiros sempre puderam prescrever essas substâncias como forma de tratamento compassivo, ou off label, em geral para pacientes com problemas neurológicos ou dor crônica. O acesso de fato a esses medicamentos, porém, envolvia a Justiça.
Após o preenchimento, pelo médico, de um formulário de responsabilização, o paciente precisaria do auxílio de advogados e despachantes para conseguir autorização judicial de importação do seu medicamento, já que não tinha registro no país. Consequentemente, tais tratamentos só eram acessíveis, na prática, para pacientes com alto poder aquisitivo.
Isso está mudando para melhor. A Anvisa aprovou a circulação de alguns compostos derivados da cannabis no mercado nacional, o que significa que esses medicamentos já podem ser adquiridos diretamente em uma drogaria - mediante prescrição médica, é claro. Nesses casos específicos, eliminou-se, portanto, a necessidade de judicialização, com benefícios sociais claros e quantificáveis, em especial na redução do valor desses medicamentos.
Um estudo da rede Cannect, maior da América Latina dedicada à promoção da cannabis medicinal, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), identificou queda de 25% no custo do tratamento de dor crônica à base de CBD. Em agosto de 2021, o tratamento saía, em média, R$ 475 ao mês. Em agosto deste ano, o valor apurado foi R$ 358.
Verifica-se, portanto, o acerto da decisão da Anvisa. Está provado que reduzir a judicialização da saúde significa democratizar o acesso a um tratamento de qualidade, mas não apenas isso. Esse é um problema que atravanca a própria gestão do Estado brasileiro, especialmente quando tratamos do Sistema Único de Saúde (SUS).
Hoje tramitam no país cerca de 540 mil processos relativos à área da saúde. Em apenas um ano, o Estado brasileiro gastou R$ 2,2 bilhões para atender às demandas de menos de 6 mil indivíduos que obtiveram decisões judiciais favoráveis. Sem contar, é claro, o que se gasta com a própria tramitação de todos esses processos, incluindo o custo dos pareceres técnicos que embasam as decisões dos magistrados.
Que fique claro: o apelo à Justiça em busca de um tratamento médico é direito legítimo de qualquer cidadão. A judicialização se torna um problema quando, em primeiro lugar, cresce exponencialmente, ao invés de constituir, como deveria, uma absoluta exceção. Ela também se torna problemática quando uma decisão pontual compromete o direito coletivo à saúde - dito de outra maneira, quando a "micro Justiça" interfere na "macro Justiça".
Os exemplos mais eloquentes são as decisões que obrigam o SUS a comprar remédios caríssimos, experimentais ou de eficácia incerta, provocando desarranjos no orçamento da saúde de um município ou de um estado inteiro. Nesse ambiente de insegurança, qualquer projeção de investimento em inovação, expansão ou melhoria do serviço fica comprometida.
A cobertura do SUS precisa se guiar por critérios técnicos e impessoais de custo versus efetividade. É nesse campo que agências reguladoras como a Anvisa podem contribuir enormemente. São elas, afinal, as responsáveis por incorporar novos medicamentos e tratamentos ao rol de procedimentos liberados em território nacional, permitindo que o Estado e as empresas do setor planejem melhor seus custos e, é claro, evitando que tantos pacientes busquem a Justiça para terem acesso a tratamentos já recomendados por seus médicos.
Como fica evidente pelo exemplo da cannabis medicinal, órgãos como a Anvisa já realizam um excelente trabalho, mas eles precisam ser fortalecidos para que atuem com mais celeridade, acompanhando a velocidade do avanço científico. Essas agências precisam de mais recursos — financeiros e humanos — para que possam desafogar a fila de remédios e terapêuticas comprovadamente eficazes que ainda aguardam liberação em território nacional.
Trata-se, portanto, de apostar no que já dá certo, isto é, defender e valorizar instituições que já contribuem para a modernização da medicina no Brasil. Esse seria bom começo para superarmos o desafio de reduzir o nível de judicialização do nosso sistema de saúde.
Cobertura do Correio Braziliense
Quer ficar por dentro sobre as principais notícias do Brasil e do mundo? Siga o Correio Braziliense nas redes sociais. Estamos no Twitter, no Facebook, no Instagram, no TikTok e no YouTube. Acompanhe!
Newsletter
Assine a newsletter do Correio Braziliense. E fique bem informado sobre as principais notícias do dia, no começo da manhã. Clique aqui.