ANO-NOVO

Artigo: Ser e dever: o militar profissional

"No período de paz, a manutenção da ordem interna cabia à tropa aquartelada, sob soldo do rei, e ele se frustrava por ver um governo reacionário e impopular empregar contra o povo"

OTÁVIO SANTANA DO RÊGO BARROS
postado em 26/12/2022 03:51

"Ave, Caesar, moritu te salutant"

Nessa semana, meditando sobre as relações entre civis e militares, assunto em moda por formadores de opinião desuniformizados, dediquei-me a reler Servidão e grandeza militares (Bibliex, 1975), um clássico da literatura contemporânea, quase uma bíblia sobre liderança militar. Alfred de Vigny o escreveu em 1835, após retirar-se do serviço ativo, no posto de capitão do exército da restauração, na França melancólica do período pós-Napoleão Bonaparte.

Foi sob essa condição de soldado em tempos de paz que De Vigny assimilou e sistematizou as ideias que deram forma a tão importante obra.

No período de paz, a manutenção da ordem interna cabia à tropa aquartelada, sob soldo do rei, e ele se frustrava por ver um governo reacionário e impopular empregar contra o povo, pleno de anseios de liberdade e de progresso, as baionetas dos soldados irmãos. "Ninguém mais que um soldado sofre com o papel de gendarme que lhes impõem os governos modernos." A atualidade da ideia instiga uma perene reflexão.

Destacava o ex-capitão dos Mosqueteiros Vermelhos a abnegação, como a mais significativa das virtudes do homem das armas. E a descrevia com maestria nos exemplos dos três soldados que a ornavam, tomados como personagens do referido livro, professando o credo da religião da honra.

O comandante de navio, ordenado a executar seu jovem prisioneiro enquanto ao mar, que acolhe a adolescente esposa do sentenciado como se filha fosse. O sargento-mor, responsável pelo paiol de sua unidade, que o faz aos ares pela preocupação de não se equivocar quanto ao controle da munição.

O ajudante de ordens, obediente ao dever de guardar segredo do que lhe seja dado a conhecer, abdica das promoções por respeito a princípios.

Passados três séculos, soldados, galardoados ou praças em início de carreira, de todo o mundo, ainda sofrem a incompreensão sobre o seu papel na sociedade, o não entendimento sobre suas missões legais e o injustificado emprego como peões no jogo de xadrez dos interesses políticos de suas nações.

Um dilema que persiste ao sabor das percepções emocionais e cognitivas, às vezes interesseiras e desapetrechadas de análises, que enodoam fardas simples, mas sempre limpas e passadas.

Como defendia o escritor ao iluminar as adversidades do soldado, a sua coroa é uma coroa de espinhos e, entre as suas pontas, não creio que haja outra mais dolorosa que a da obediência passiva.

Obediência que o passar do tempo e a velocidade das informações exigiu o aporte da discordância leal nas relações superior-subordinado.

No capítulo "sobre o caráter geral dos exércitos", De Vigny elabora a tese de que a centralização do poder, àquela época, tornara o Exército um corpo separado do grande corpo da nação, sendo-lhe impedido de crescer.

Afirmava que esses senhores da guerra se perguntavam da alvorada ao toque de silêncio se eram escravos submissos ou reis do estado por quem davam suas vidas.

Isso ocorria (e ocorre), um pouco pela leniência dos poderosos em envolver-se nessas relações de respeito e subordinação, um pouco pelo medo que as baionetas lustradas traz aos armados pela pena.

"Os exércitos permanentes embaraçam os seus donos. Cada soberano olha o seu exército tristemente. Esse colosso sentado a seus pés, imóvel e mudo, incomoda-o e assusta-o. Não sabe o que fazer com ele e teme vê-lo voltar-se contra si".

Na adolescência do século 21, o mundo vive os dois lados da moeda representativa do "ser e dever" do soldado, como indivíduo, e da caserna, como instituição: a guerra pela defesa da soberania de uma nação e o controle interno diante de explosões sociais em países enfraquecidos na institucionalidade.

No Brasil, dúvidas, falácias e constatações sobre o papel dos homens e mulheres das armas se fazem presentes e são renovadas quase que diariamente no imaginário da opinião pública.

Obriga, por consequência, as lideranças militares de nosso país virem à ribalta repetir a fala do ator fardado na peça da institucionalidade, estabilidade e legalidade: distinto público, ajudamos a formar os valores e tradições que todos defendemos, mas somos, antes de tudo, escravos do povo que conforma a nossa nação, a quem servimos por abnegação, por honra, por respeito, hoje e sempre.

Caros leitores, desejo-lhes um novo ano pleno de realizações.

Paz e bem!

*Otávio Santana do Rêgo Barros é General de Divisão da Reserva

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