Análise

Artigo: Minha visão holística sobre racismo

Claro, mudar algo histórico, sobretudo o comportamento social, é algo demasiadamente difícil. Se por um lado, é possível observar avanços no combate à discriminação e ao preconceito racial, por outro, cintila a resistência daqueles que veem o racismo como algo que surge do imaginativo dos negros e negras, um mero refluxo de suas fragilidades resultantes da posição de minorização social, política e econômica

Correio Braziliense
postado em 24/12/2022 05:00
 (crédito: Maurenilson Freire)
(crédito: Maurenilson Freire)

BEETHOVEN ANDRADE - Advogado. Presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB/DF

 

Existe uma linha tênue entre o que é racismo e aquilo que é considerado resultado natural de ações do estado e da sociedade, em especial aqui no Brasil. Por muitos anos vimos veículos de comunicação valer-se da imagem da pessoa negra como principal vetor de piadas e caóticos dramas, o que fomentou na coletividade a naturalização do comportamento discriminatório herdado do período escravocrata. Ao mesmo tempo, para o estado, a existência de favelas, assentamentos, invasões, subemprego etc., resulta de uma falibilidade individual, visto que, a espeque do possível, as políticas públicas são ofertadas a aparente contento, demonstrando a existência de uma esconsa meritocracia.

Claro, mudar algo histórico, sobretudo o comportamento social, é algo demasiadamente difícil. Se por um lado, é possível observar avanços no combate à discriminação e ao preconceito racial, por outro, cintila a resistência daqueles que veem o racismo como algo que surge do imaginativo dos negros e negras, um mero refluxo de suas fragilidades resultantes da posição de minorização social, política e econômica.

Debater políticas antidiscriminatórias nos conduz, inevitavelmente, aos estudos acadêmicos sobre a temática; não que seja ruim, mas é como se o negro estivesse sempre no polo passivo epistémico, e por mais que avance, não consegue se desvencilhar da atuação coadjuvante em sua própria história.

Em 2021 o Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento de que injúria racial possui status de crimes de racismo, portanto, imprescritíveis e inafiançáveis. Porém, entender o racismo dessa ótica resulta compreender o que estruturalmente e institucionalmente é o racismo: volátil, mutável e extremamente moderno, sem falar de sua resistência diamantina, traduzido em comportamento aversivo que une aqueles que defendem que o racismo não existe, mas continuam praticando atos discriminatórios e excludentes.

Para críticos, a injuria racial, ou qualificada, tem por escopo, tão somente, individualizar o racismo brasileiro, amenizando e o reduzindo à subjetividade dos envolvidos e aos conflitos interpessoais de uma sociedade incapaz de conviver com suas diferenças. Seria um mecanismo com intuito precípuo de alertar à sociedade que o estado não é discriminatório em suas ações, ou na ausência delas, mas que pessoas isoladamente possuem comportamentos incondizentes com a paz social e que o estado está atento, ainda que ineficaz, à visão da coletividade negra.

Traduzir os efeitos e as angústias do racismo estatal (estrutural e institucional) é de sobejo mais dificultoso que interpretar processualmente as aflições de uma agressão à subjetividade da pessoa negra com base em sua cor de pele, tão debatida academicamente. Enquanto aquele invisibiliza e consume a subjetividade étnico-social das pessoas negras em esfera coletiva, o preconceito e discriminação ferem uma consciência individual sobre a condição de pessoa negra em uma coletividade, ou seja, uma visão de integração e pertencimento à sociedade, mas ambos possuem condão de macro marginalizar, excluir ou inferiorizar a coletividade negra, não o indivíduo. Por isso, injuria, preconceito e discriminação, na esfera penal, devem ser tratados como comportamentos racistas, consequência de um mal maior.

Longe dos estudos acadêmicos, onde não há epistemologia, cada pessoa convive com o racismo à sua maneira, engolido por um monstro invisível que há muito a fez assimilar que a vida é assim, dura mesmo, que o ódio pelo tom de pele, ainda que inato, é algo que não pode interferir no cotidiano coletivo, que o subemprego, a vida indigna é apenas reflexo de um fracasso pessoal, muito embora resulte da inexpressiva e falível prestação de serviços públicos, enquanto que, para olhares turvos, à ausência de condições iguais de oportunidade é apenas um infortúnio. Sorte é ter privilégios e conseguir ser indiferente aos que não os têm!

De tal modo, para uma visão holística sobre o racismo é imperioso reconhecer que individualmente cada pessoa sentirá seus efeitos de modo díspar, um fenômeno que jamais poderá ser traduzido aos livros ou trabalhos acadêmicos, mas tão real quanto à impossibilidade de definir o racismo criminalmente, tendo-se em vista seu caráter não-rígido e adaptável aos avanços das políticas afirmativas. Poderíamos apenas concluir, de certa maneira, que apenas superaremos o racismo quando o estado der efetividade às políticas afirmativas e inclusivas, se divorciando, por fim, da falácia de democracia racial.

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