Análise

Artigo: De leis, comportamentos e investimentos

O fato é que transações envolvem não apenas troca de bens privados, que se acertam com preços corretos, mas também interações entre agentes com informações privadas, que se acertam por relações contratuais

Correio Braziliense
postado em 22/12/2022 05:00
 (crédito:  Marcello Casal Jr/ Agência Brasil)
(crédito: Marcello Casal Jr/ Agência Brasil)

CARLOS A. CINQUETTI - Ph.D. em economia, é professor sênior do Dep. de Matemática e Computação da Unesp

Após a independência durante o séc. 19, as colônias da América Latina (AL) retrocederam economicamente. Pudera, inexistiam incentivos à prosperidade, mantido o poder político centralizado e discricionário tanto no comércio externo quanto no interno. Nem incentivos de propriedade nas terras e no trabalho, que era escravo ou semisservil. Essas adversidades, corporificadas em distâncias econômicas, fomentaram ainda distâncias culturais, baixa confiança interpessoal, por vezes, levando a guerras civis.

O fato é que transações envolvem não apenas troca de bens privados, que se acertam com preços corretos, mas também interações entre agentes com informações privadas, que se acertam por relações contratuais. Até a concorrência depende de bons esquemas de governança para garantir compromissos entre as partes. E tal comportamento cooperativo se apoia tanto na racionalidade social quanto em valores culturais. Como o individualismo, um egoísmo com consideração ao outro, mais condutor à confiança interpessoal, o capital social. Valores formados e transmitidos em diversas esferas de socialização.

Tais noções perderam lugar na economia pós-A. Smith, focada em sistema de preços. Para Marx, a visão de trocas sem conteúdo social é própria ao capitalismo, em que as mercadorias e o capital fazem as relações sociais e os homens apenas as relações materiais. A única cooperação existente é aquela montada pelo capital na fábrica. Dessa rejeição à racionalidade social dos agentes, segue uma visão tosca de crescimento determinado por investimentos e progresso produtivo fabril. Uma concepção que desaparece academicamente nos 1980s. Não apenas pela queda do Muro de Berlim e do avanço do capitalismo na China, mas também pelos novos paradigmas da economia, como teoria dos jogos e contratos, além da climetria (História Econ. Econométrica).

Mas não foi essa visão que orientou as reformas liberalizantes da economia na AL a partir dos 1980s. O consenso de Washington focou em preços certos, não em instituições certas. Não percebeu, por exemplo, que a competitividade internacional dependia de mercados formais (legais), o mesmo para o estabelecimento de ativos em capital e de firmas estruturadas. E ainda havia um obstáculo maior: faltava uma moeda para nomeação estável dos preços.

Em meados dos 1990s, uma reforma monetária no Brasil, e semelhantemente noutros da AL, consegue zerar a inflação de 1.000% a.a. Foi beneficiada pela abertura comercial e por novas leis e regras fiscais. Lamentavelmente o ganho tributário da desinflação foi plenamente capturado pelo governo, com os tributos saltando de 26% para 30% do PIB. Esse tarifaço, combinado à baixa melhora institucional, deixou os investimentos na medíocre faixa de 17% a.a.

Na virada do século 21, vem a reação: o socialismo (latino-americano) do século 21, no qual o Consenso de Washington se limita a buscar preços certos — numa perspectiva igualitária e antimercado. Afinal é estranho à visão socialista empenhar-se em melhoras nos incentivos institucionais para comportamentos mais cooperativos no mercado e nas firmas. A solução para exclusão exigia, ao contrário, um governo discricionário com nova vontade política. Se tornam funcionais, assim, o governo centralizado, o presidencialismo e as poderosas estatais. Para garanti-los, se reforça a relação fisiológica com o Legislativo, agravando os abusos e a corrupção no Executivo.

Suas políticas distributivas mantêm a exclusão, pois atacam apenas os efeitos rendas (preços) da desigualdade econômica, não suas causas. As condições impeditivas da ascensão econômica dos debaixo: lei fraca, falta de saneamento, transportes e escolas públicas ruins. Nem se avançou noutras condições, as custosas regras de abertura de firmas e de tributação, além de reverter as exclusividades nas importações.

Houve crescimento, embora os investimentos e a produtividade não crescessem, graças aos ganhos de renda com o boom das commodities. Com o fim dele, veio o colapso econômico. Países (Chile, Peru, Costa Rica, Panamá e Rep. Dominicana) que avançaram mais nas reformas escaparam desse revés. No Brasil, veio também o colapso político que culminou na eleição de um governo dito liberal em 2018. Mas, malgrado a independência do Banco Central e a melhora nas regras para firmas, não avançou na reforma tributária nem na descentralização governamental. Nem em reformas trabalhistas, visando ampliar o contrato formal e assim os compromissos nas firmas. Em suma, tal qual o Consenso de Washington, focou mais em preços certos.

Não avançou em reformas políticas, tendo mesmo aumentado sua discricionariedade, incluindo a militarização do Executivo. O grande investimento político foi numa guerra santa que reforçou a intolerância e o comportamento grupal, o oposto do individualismo cooperativo. Isso fomentou, durante a pandemia, políticas de saúde desastrosas, que selaram o futuro deste governo.

E com a evolução institucional e a cultural travadas, vieram más escolhas sociais. Como ressuscitar um governo que vê desenvolvimento através de gastos públicos. Antes de assumir, usando de habilidades com o fisiológico Congresso, já conseguiu quebrar regras fiscais, que antes levaram ao impeachment de Dilma e regras de governança nas estatais, que antes levaram à prisão de Lula.

A atualidade de um passado secular de descompromissos é inescapável. Temos políticos inimputáveis, o orçamento secreto, uma suprema corte que avança em tarefas dos demais poderes, e um governo que taxa como a Inglaterra, 33.5% do PIB, e entrega como países com carga de 22% do PIB. Sua ineficiência em assegurar propriedades e contratos leva, entre outros, ao mais baixo capital social (confiança interpessoal) da AL, que também reflete uma sociedade com uma elite que não mora, nem educa seus filhos em espaços públicos, e uma maioria pobre que define eleições em favor de políticas clientelistas. Apenas as leis da economia são incontornáveis, daí os baixos investimentos e produtividade.

 

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