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Artigo: O deserto que atravessei

Marcos Paulo Lima
postado em 17/12/2022 06:00
 (crédito: Raul Arboleda/AFP)
(crédito: Raul Arboleda/AFP)

Sim, o título é referência à canção de Zélia Duncan. Foi uma das trilhas sonoras na primeira Copa no Oriente Médio quando batia saudade da minha família: rainha Elisabete e princesa Bela. O Mundial chega ao fim com sentimento estranho. De perda. A sensação de que o Qatar voltará a ser um deserto. O êxodo começou. Ontem, retornava da pauta e lamentei com um dos recepcionistas: está acabando, amigo.

Ele respondeu olhando nos meus olhos com a voz embargada: "Triste". Ele disse que os turistas trouxeram alegria ao país. Oportunidade de emprego. Os funcionários do nosso prédio são de países variados. Uma da Malásia. O outro de Uganda. A maioria indianos. Passaram longe dos estádios suntuosos. Os mais belos que vi em quatro abençoadas coberturas. A felicidade deles é como a ocupação: temporária. Questionei como será o amanhã. Ele afirmou, arrasado, que o condomínio, em Mshreib, será fechado. "Só restam vocês", lamentou, referindo-se a mim e a outros três colegas jornalistas com quem divido a unidade.

As diárias em hotéis na Copa inflacionaram. Impagáveis. Imprensa e torcedores partiram para alternativas como apartamentos. Todos padrão Fifa. Fiscalizados por uma rede a fim de evitar surpresas desagradáveis. Na contramão do luxo. Sem ostentação. E funcionou incrivelmente bem.

A Copa mais cara — e compacta — da história rolou praticamente em uma cidade: Doha. As demais são quase bairros. É como se o torneio fosse disputado todinho aí no quadradinho do DF com partidas em Brasília, Gama, Taguatinga, Sobradinho, Guará...

O Qatar volta a ficar deserto. Estranho e só. Não totalmente porque hoje tem decisão do terceiro lugar. Os torcedores do Marrocos, os mais barulhentos da Copa, como mostrei em uma matéria no Correio na qual medi os decibéis no triunfo contra a Espanha, não arredaram os pés para o duelo com a Croácia. Os argentinos transformaram o mercado Souq Waqif no Obelisco da 9 de julho, em Buenos Aires. A partir de segunda, a vida voltará ao normal. Das oito arenas, seis deram adeus. O meu xodó 974, todo trabalhado em contêineres, é nostálgico.

Sentirei saudade do som das orações muçulmanas cinco vezes ao dia. Vivi a experiência de entrar descalço em uma mesquita. Saudade do amigo árabe do mercado. Quanto esforço para falar inglês. Dos restaurantes e botecos indianos e filipinos 24h. Matavam a fome. Quanta pimenta no tempero! E os hábitos culturais?! Eles comem numa boa com as mãos. Nós, não. É uma luta diária pedir talher. Demora horrores. Dá impressão de que nem sabem onde fica. Saudade do passeio no deserto até a fronteira com a Arábia Saudita. Lindo. Dos gritos e coreografias dos voluntários: "metro, this way", apontando o caminho rumo aos estádios.

Guardarei lembranças duras. O olhar assustado de uma idosa islâmica que subia a escadaria carregando cadeira de rodas. Ofereci ajuda. Ela recusou como se não pudesse aceitar. No metrô lotado, cedi lugar a uma muçulmana em pé. Ela fez de tudo para recusar, como se lugar de homem fosse sentado e de mulher em pé. Mais do que uma Copa, foi a guerra dos mundos.

 

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