HENRIQUE ANDRADE - Fundador do Instituto Doando Vida por Rafa e Clara
Querido brasileiro, ao seu redor, a fome afronta a dignidade e destrói possibilidades. Ela pode não bater à sua porta e você, talvez inconscientemente, evita entender o que se passa com 30% da população do nosso país. Mas há crianças e adultos com fome em todos os cantos do Brasil. Se saber que cerca de 62,5 milhões de pessoas vivem na pobreza e outras 17,9 milhões sobrevivem na extrema pobreza não te incomoda, o que te move? A Copa do Mundo aflora a torcida por uma Seleção que nos representa, é contagiante experimentarmos ser uma potência. Mas, e os números do IBGE que escancaram nossas mazelas? Eles te motivam a entrar em campo e jogar contra a realidade que está ao alcance dos olhos de qualquer cidadão que quer enxergar?
Sou pernambucano e migrei para Brasília há mais de 40 anos. A fome sempre existiu ao meu redor. Vivenciei o Brasil avançando em muitos aspectos, mas a fome persiste e parece invisível aos olhos de muitos. A fome se agiganta e ancora o atraso, o descaso social. Betinho estava certo. Quem tem fome tem pressa. Diante da obra do sociólogo e de sua luta contra a fome, acredito que Betinho também percebeu que quem a sente não tem energia para transformar. É justificável. A desnutrição mina as forças de qualquer ser humano.
E quem não tem fome nem pressa? A menos de 15km do Palácio do Planalto e do centro de Brasília, bem pertinho das incríveis obras de Niemeyer e Lucio Costa, a fome mostra as garras e perpetua outras fomes: de dignidade, de educação, de futuro. Na Chácara Santa Luzia, as moradias são paupérrimas, a comunidade de menor Índice de Desenvolvimento Humano do DF não está no mapa nem nas estatísticas oficiais. Seus moradores sobrevivem às margens do maior lixão a céu aberto da América Latina - desativado em 2018, mas ainda insalubre. As casas são de madeirite e papelão, o chão, de terra batida.
Fica evidente que parte dos famintos do Brasil estão ali. Estima-se serem aproximadamente 4 mil domicílios, 10 mil pessoas. Eles não são invisíveis, garanto. Padecem há anos, em meio à lama nos meses chuvosos e à poeira nos meses secos, sem água potável, tendo como vizinho o esgoto a céu aberto. Vivem a realidade de um Brasil que não reage à fome, ao abandono, à discrepância social.
Ao longo da minha trajetória, entendi que a minha fome não será saciada se, ao meu redor, o estômago de outra pessoa continuar roncando. Não é fácil arregaçar as mangas para alimentar, transformar vidas, atuar em prol de quem tem fomes. Não estou sozinho, não conseguimos abraçar todos, mas tenho certeza ser possível se houver mobilização e boa vontade. Entrei de cabeça no 3º setor motivado a realizar o sonho de uma filha que enxergava mais que eu. Rafaela queria matar a fome de crianças que viviam a vulnerabilidade nutricional. Ela estudou nutrição na UnB e foi para o Canadá fazer um mestrado. Em 2013, pesquisa concluída e pronta para ser implementada, passagem comprada para o retorno ao Brasil, planos interrompidos. Um acidente de carro tirou as vidas da Rafa e da minha netinha. Meu luto é permanente, a dor dilacerante.
Perder filha e neta é inverter a lei natural da vida. Ninguém, absolutamente ninguém está preparado para tal perda. As nossas vidas, minha e de minha esposa, voltaram a ter sentido apenas quando conseguimos ressignificar essa dor. Com amigos e familiares, criamos o Instituto Doando Vida por Rafa e Clara, que ampara 80 crianças, de 2 a 5 anos, diariamente. São crianças que conhecem a dor da fome, que sobrevivem na Chácara Santa Luzia, vizinha da nossa OSC. Proporcionar a elas todas as refeições diárias necessárias ao crescimento saudável, oferecer água limpa para beber e tomar banho, saciá-las com atividades socioeducativas e cuidados dos quais toda criança tem direito me faz enxergar, diariamente, que a resposta coletiva é o caminho para um país que quer ir além do hexacampeonato mundial.
A extrema pobreza aflora mazelas evitáveis: a violência cresce, o analfabetismo se impõe, as doenças se multiplicam, o retrocesso abraça o futuro. Santo Agostinho disse: "Não basta fazer coisas boas, é preciso fazê-las bem". Aqui no Instituto, acreditamos que, além de fazer bem, podemos fazer mais. Entretanto, precisamos que mais pessoas enxerguem a pobreza que nos cerca. Por isso, se você chegou até aqui na leitura deste artigo, sinta-se convidado. Venha conhecer nosso trabalho. Ele se tornou um oásis que resgata a cidadania e a dignidade das crianças e famílias que habitam a Chácara Santa Luzia, mas não é puramente assistencial. Temos buscado abastecer a comunidade de conhecimento, com cursos e oficinas em diversas áreas, para que os moradores tenham condições de empreender ou buscar uma colocação no mercado de trabalho. É uma luta, muitas vezes inglória.
Quem viveu no descaso a vida inteira, não acredita em si mesmo. Ainda assim, eles me ensinam todos os dias. Uma das lições é que o assistencialismo, pura e simplesmente, não transforma. É preciso ir além. Por isso, luto para matar outras fomes que estão ligadas à fome de comida. Trabalhar no 3º setor é escancarar as mazelas e a realidade que muitos preferem não enxergar. É ecoar o que não se quer ouvir, é pedir incansavelmente, é se envolver em batalhas difíceis, doar-se, é tecer uma corrente de consciência e bem. Os milhões de vidas que hoje passam fome são milhões de vidas que têm o mesmo direito que você. A fome é uma barreira que impede o futuro. A fome deve incomodar você, ainda que a sua mesa esteja farta. Fazer o bem faz bem.
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