DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR - Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, membro titular da Academia Brasileira de Pediatria, ex-presidente do Global Pediatric Education Consortium (Gpec), E-mail: dicamposjr@gmail.com
A infância saudável tem sido sempre desprezada no Brasil, já de longa data, apesar de reconhecida como prioridade absoluta pelo artigo 227 da Constituição brasileira. É chegada a hora de cumprirmos esse termo constitucional para que seja assegurado à sociedade o futuro a que suas crianças têm direito. Do contrário, seguiremos no atraso nacional cuja dimensão é vergonhosa. Poucos são os integrantes das novas gerações que têm acesso à saúde e educação de qualidade. É um privilégio concentrado nas mãos das elites.
A nossa nação não pode desconhecer ou ignorar as razões que sustentam solidamente esse argumento em defesa da infância saudável. Se não nos comprometermos com a superação desse tenebroso impasse, nosso país não será capaz de reverter o atraso a que estamos condenados.
Na verdade, em favor desse tema, não faltam provas científicas claras e incontestáveis que requerem a sua mais ampla divulgação. É um debate que há de ser disseminado, em todo o país, a fim de que se converta na luta por um dos mais importantes projetos em favor da superação do referido atraso nacional.
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Nesse sentido, alguns apelos são relevantes e devem ser relembrados. Na era romana, o historiador Cícero definiu educar como "amamentar, proteger e instruir a criança". É um conceito bem coerente com a relevância do papel da maternidade. Já no século 19, Frederick Douglass, líder da luta contra a escravidão dos negros nos Estados Unidos, penosa condição em que nasceu e cresceu naquela época, descreveu suas sofridas etapas de vida, sempre exposto à discriminação e ao segregacionismo violento. Conseguiu formar-se na área do direito e sua liderança foi assim respeitada naquele país. Com base na experiência de vida que marcou sua história, declarou: "É mais fácil construir crianças fortes do que reparar homens quebrados". No Brasil, Ruy Barbosa, que elaborou um projeto de educação infantil, afirmou: "Ou o país adota projeto nestes moldes ou a sociedade não terá futuro".
Ademais, quanto maior o avanço do conhecimento científico sobre a faixa etária da criança, mais abundantes são as comprovações objetivas desses princípios que fundamentam a prioridade absoluta da saúde e educação da infância. Com efeito, o cérebro humano tem sua velocidade de crescimento maior na vida intrauterina. Aumenta, em média, três gramas por dia nos três últimos meses de gravidez. O recém-nascido vem ao mundo com cerca de 100 bilhões de células cerebrais, os chamados neurônios. A estrutura cerebral continua em crescimento regressivo após o nascimento, cerca de uma grama por dia nos primeiros seis meses de vida. Permanece em crescimento até o sexto ano de vida, período denominado primeira infância.
O grande economista social americano James Heckman, Prêmio Nobel da Economia, realizou brilhante investigação científica e social, confirmando que o investimento com mais alto índice de retorno na economia de um país é na saúde e educação de qualidade da infância. Seu trabalho consistiu no seguimento de dois grupos de crianças do mesmo bairro de uma cidade,marcado pela pobreza. O primeiro grupo era integrado por crianças que tiveram acesso à educação e saúde de qualidade na infância. O segundo grupo era formado por aquelas que não tiveram tal oportunidade. Foram acompanhados e avaliados até atingirem a idade adulta. Os indicadores por ele aplicados na avaliação do desempenho dos dois grupos consolidaram a prova de que o primeiro grupo teve desempenho sempre superior ao do segundo grupo. Ficou também comprovado que, para cada dólar investido na saúde e educação de qualidade na infância, o retorno para a sociedade é de U$ 7. E se os cuidados se iniciam na fase pós-natal da infância, o retorno é de U$ 13. Nada mais seguro e construtivo.
Com os avanços da neurociência e da epigenética, tornou-se comprovada a prioridade absoluta do investimento em saúde e educação da infância, durante a qual o cérebro se diferencia de forma estrutural e fisiológica, adquirindo o potencial cognitivo mais alto da existência de um ser humano. É a única fase de construção da personalidade de cada pessoa, que garante a geração de adultos com elevado capital cognitivo.
O novo governo brasileiro não deve ignorar tão relevantes evidências. Há de considerá-las sólidos argumentos para incorporar saúde e educação da infância como projeto de prioridade absoluta para o bem do país. A primeira iniciativa deve ser a criação do Ministério da Infância a fim de que as ações do projeto sejam cabíveis e sustentáveis.