BENITO SALOMÃO - Doutor em economia pelo PPGE/Universidade Federal de Uberlândia (MG)
Diante da transição em curso, o governo eleito sinaliza suas prioridades, deixando claro, no meu entendimento de forma acertada, que vai recuperar a agenda social abandonada na última década. O Brasil empobreceu nos últimos anos e as camadas posicionadas na base do estrato social sofrem mais com isso, por vias de privações de itens básicos de cidadania como alimentação e vestuário. Portanto, a agenda de readequar o aos seus critérios originais de focalização e contrapartidas, somado ao fortalecimento do salário mínimo, são extremamente bem-vindas. Outras pautas, igualmente importantes, como a recuperação da ciência e tecnologia deveriam estar entre essas prioridades.
A agenda social de Lula, no entanto, passa por um desafio não trivial. Seus programas exigem recursos públicos escassos e vão, certamente, ser confrontados em algum período com a restrição fiscal do Estado. De forma que o problema que a equipe de transição enfrenta não é puramente o de redesenhar políticas públicas a fim de torná-las mais progressivas, mas sim de fazer isso respeitando a sustentabilidade fiscal de longo prazo.
A boa notícia é que essas pautas não são inconciliáveis se bem desenhadas e anunciadas adequadamente ao público. O Auxílio Brasil, tal qual foi concebido pelo governo atual, tinha problemas de focalização, isso tornava o programa relativamente caro e pouco efetivo no seu objetivo principal de mitigar a pobreza. O salário mínimo, por sua vez, indexa um conjunto relevante de rubricas do orçamento, como, por exemplo, a previdência social. Achatar em termos reais o salário mínimo nos últimos anos foi uma estratégia de segurar o crescimento compulsório das despesas públicas, particularmente as obrigatórias. Evidentemente que o represamento do salário mínimo é uma tentativa injusta de jogar o custo do ajuste fiscal nos ombros dos pobres.
Saiba Mais
O governo eleito caminha para corrigir tais injustiças. Via de regra, governos que entram herdam peças orçamentárias elaboradas pelos governos que saem. Desta vez está sendo diferente, a equipe de transição está articulando diretamente com a relatoria do orçamento no Congresso, o espaço fiscal para incluir sua pauta social. Até o presente momento, dois erros (corrigíveis a partir do momento que os coordenadores de grupos temáticos são conhecidos) podem ser apontados.
Primeiro, tentar encaminhar por via de emenda à Constituição (PEC) sua pauta social para 2023. A política fiscal brasileira está viciada em PECs, criam-se PECs para limitar gastos e depois cria-se PECs para burlar tais limites em conformidade com a lei. Vale lembrar, ainda, um elemento conjuntural. Este é um governo cuja maioria no Congresso é frágil, os partidos puramente de esquerda representam apenas 27% da bancada na Câmara e a lealdade dos partidos de centro que comporão a base muda de acordo com o humor das ruas. Portanto, quanto menos assuntos o governo conseguir tratar sem precisar formar maiorias qualificadas no Congresso, melhor.
Em segundo lugar, o governo sinaliza a acomodação de demandas sociais, mas não sinaliza na mesma magnitude a preocupação com o problema fiscal, que existe. O Brasil está em deficit primário desde 2014 e, a depender do tamanho do pacote social incorporado no orçamento de 2023, pode ter um deficit primário elevado naquele exercício. Isso não é problema se o governo for capaz de acomodar expectativas. Porém, só pode ser feito por via de um compromisso fiscal, ou seja, uma regra formal na qual o governo se comprometa com metas fiscais realistas a partir de 2024.
Vale ressaltar que a sustentabilidade fiscal é um problema de otimização dinâmica cujos agentes formam expectativas acerca do comportamento futuro esperado de um conjunto amplo de agregados. Neste arcabouço teórico, gastos públicos adicionais (independentemente do mérito) podem sugerir impostos, juros e inflação mais altos no futuro, reduzindo a renda permanente dos indivíduos. Dado que expectativas são fenômenos psicológicos profundamente subjetivos, o oposto também pode acontecer. Elevações de gastos públicos podem sugerir expansão da renda futura, com redução dos juros e preços.
Tão importante quanto a criação do colchão social no orçamento de 2023 é administrar tais expectativas visando conduzi-las para o segundo cenário. Para isso o governo eleito deve sinalizar, já na transição, uma regra fiscal que discipline o gasto público, particularmente o obrigatório, a fim de ganhar a confiança dos agentes, preservando o país de desequilíbrios macroeconômicos a médio prazo.