GERSON BRISOLARA - Jornalista com atuação em meios de comunicação, educação corporativa e assessoria na imprensa gaúcha
A cantora e compositora Leci Brandão tem em seu repertório um partido-alto animado, intitulado "As coisas que mamãe me ensinou". A letra é imbuída de ensinamentos que formaram muitas famílias negras. Coisas que sua mamãe, também de nome Lecy (com a letra Y no final), ensinou à menina carioca nascida e criada no bairro de Madureira e que veio a se identificar com a escola de samba Estação Primeira de Mangueira.
Ao ritmo do cavaco e do tantã, ela desfila um rol de lembranças da infância, como receitas culinárias, dicas caseiras para curar doenças e ensinamentos de bons modos (um bom-dia, boa-tarde/ com licença, por favor/ tudo isso é resultado das coisas/ que mamãe me ensinou). Creio que Leci Brandão gostaria de ter falado de muito mais coisas que nos foram ensinadas pelos antigos, mas não couberam na gravação. Em especial, alertas para se defender do racismo institucional que assola o país desde sempre.
Vai sair? Leva um documento com foto. Quem foi adolescente na década de 1980, como é o meu caso, deve ter escutado muito isso. Minha geração era estimulada a amadurecer mais cedo. Aos onze, doze anos, eu e alguns coleguinhas já entrávamos sozinhos no transporte coletivo (sem a companhia dos pais) para ir à escola, jogar futebol etc. E aos meninos negros era recomendado levar algum documento de identificação com foto. Por ser filho de pai militar, eu tinha o RG emitido pelo Exército e, óbvio, carregava a carteira sempre comigo. Segundo meus pais, caso eu me perdesse, seria mais fácil me localizar e eu não iria parar na temida Febem, destino de quem não soubesse dizer onde morava ou se a autoridade desconfiasse que o garoto não tinha pai nem mãe.
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Não mexe em nada! Isso era praxe. Antes mesmo de entrar em algum comércio, eu já ouvia: "não fica colocando a mão nas mercadorias". Ainda mais se não fosse comprar nada. Ora, os negros já são observados (e perseguidos) naturalmente quando entram em loja, supermercado, armazém, padaria ou shopping center. Para um dono desses estabelecimentos (geralmente branco) acusar que a gente está roubando alguma coisa, pouco custa. Daí nossos pais recomendarem que não mexêssemos em nada das gôndolas ou prateleiras. Afinal, criança não tem dinheiro mesmo.
Guarda a nota fiscal! Recomendação autoexplicativa. Temos visto diariamente "casos isolados" de agressões a jovens negros acusados de roubo em lojas, supermercados e shoppings. Por "coincidência", os seguranças desses centros de comércio tendem a confundir negros com criminosos, espancá-los e expulsá-los dos locais. Chegamos ao ponto que uma mera nota fiscal pode servir de carta de alforria.
Vai sair? Então te arruma bem! Uma das grandes preocupações — ou incomodações — da população negra sempre foi com a aparência física. Esse aspecto tem um papel primordial na formação e no desenvolvimento dos estereótipos. As aparências vão ao encontro do status socioeconômico. Não há coisa mais aviltante para um afro-brasileiro do que ouvir a insinuação de ser um "negro sujo", como se a sujeira fosse a própria cor da pele. Os pais sempre querem que seu filho negro, ao sair na rua, esteja de banho tomado, perfumado, bem arrumado, com roupa limpa e bonita. E de cabelo penteado ou cortado, bem curto, à máquina.
Assuntos como discriminação racial sempre fizeram parte da educação dos filhos de cidadãos afro-americanos. A discussão se acentuou nos lares das famílias negras nos Estados Unidos após o assassinato de George Floyd, estrangulado por um policial branco durante uma abordagem, em Minneapolis, em maio de 2020.
No Brasil, falar sobre racismo com as crianças é primordial. Um dos maiores desserviços é dizer que "somos todos iguais", ressalta a organização americana The Counscious Kid. Para especialistas, os pais devem falar sobre racismo com as crianças desde cedo.
Um bom início é buscar informação de qualidade para entender como funciona o racismo e como ele organiza a sociedade, assim como dizer a verdade às crianças. Mesmo que pegas de surpresa por assuntos delicados, as famílias devem se lembrar de respondê-las com honestidade. Conhecer artistas, políticos, ativistas e cientistas negros é ampliar o leque de referências positivas. Exemplos existem aos montes: Lázaro Ramos, Maju Coutinho, Emicida, Conceição Evaristo, Milton Santos...
Por fim, defender a educação antirracista. A escola é um excelente meio de convivência com a diversidade. Pintou o bullying, é função da escola conversar, intervir. E a conversa deve continuar em casa. Com as coisas que papais e mamães devem ensinar.