OPINIÃO

Artigo: "Eu vi o mato seco em chamas"

"'Mato seco em chamas' constrói e comprova, de forma exemplar, o que Adirley vem dizendo há muito tempo sobre seu cinema: é etnografia da ficção"

Correio Braziliense
postado em 19/11/2022 22:16 / atualizado em 21/11/2022 13:58
 (crédito: Vitrine Filmes/Divulgação)
(crédito: Vitrine Filmes/Divulgação)

Por Dácia Ibiapina

Eu vi o “Mato seco em chamas” e escutei as resenhas. O mato seco queima. A chuva molha a argila vermelha do cerrado e a lama corre solta pelas ruas do Sol Nascente. Esse filme é fogo na gasolina e lama na botina.

Eu vi as pessoas orando e senti vontade de orar com elas para compartilhar a força. Esses momentos de oração são luminosos no filme. Outro momento de iluminação é um planão com uma gasolineira em cima de uma torre com as luzes da cidade ao fundo. Esse plano é feito e refeito algumas vezes no decorrer do filme. Olhar a Ceilândia de cima, de dia e de noite, é uma das obsessões do cinema de Adirley Queirós. A fotografia de Joana Pimenta é poderosa. Tanto nesses planos gerais quanto nos primeiros planos enfumaçados das gasolineiras. Elas metem fogo em tudo. Dedo ligeiro no isqueiro e no gatilho.

A parceria de Joana Pimenta e Adirley, na direção, possibilitou esse filme com evidente protagonismo feminino. Tem também a direção de arte de Denise Vieira e montagem de Cristina Amaral. A pegação das meninas e suas conversas sobre a pegação no presídio feminino flui e convence. Tem olho de mulher atrás da câmera. Tem mulher na direção, na direção de arte, na montagem. Tem muita mulher no filme. Você sabe o que é uma jega?

A direção de arte de Denise Vieira tem muita imaginação e fantasia. Lea é a mulher do cabelão. Seu cabelo e a forma como ela o maneja em cena é tão expressivo quanto o shortinho oleoso da Chitara. Com lama, óleo diesel, dutos e uma perfuratriz das antigas; Denise transforma um lote do Sol Nascente em uma plataforma de extração de petróleo. Soube que a perfuratriz veio malocada em um navio com bandeira de um país do golfo pérsico nos anos 1950. Eu imagino que é mais ou menos assim que ocorre hoje a mineração na Amazônia.

Para fazer dinheiro, não basta achar e extrair o petróleo de baixo da terra. Para fazer dinheiro, é preciso refinar e vender. Aqui entram os motoqueiros. São eles que comercializam clandestinamente a gasolina. Em seus baús, eles transportam os depósitos de gasolina e fazem o produto chegar aos consumidores. Os motoqueiros enchem os olhos e os ouvidos dos espectadores. Enquanto dezenas de motos rasgam as ruas da periferia em cenas lindas, o ronco dos motores enchem a trilha sonora do filme. Gasolineiras e motoqueiros são os trabalhadores protagonistas do filme. Aproveito para indicar a Chitara para o ministério das minas e energia de Lula. Onde já se viu exportar petróleo e importar gasolina? Andréia, com look semelhante ao de Chitara (o que me deixou confusa algumas vezes), como boa empresária que é, tentou se eleger a deputada distrital pelo PPP (Partido do Povo Preso). Revisitação da campanha de Dildu (77223) no filme "A cidade é uma só?".

Lea e Chitara são grandes narradoras. Seguram as resenhas do filme como se tudo fosse verdade. E de certa forma é. Cabe perguntar: é ficção ou é documentário? Certamente é um filme de memória e ancestralidade. Inova ao trazer a ancestralidade bandida e a luta por sobrevivência e dignidade dentro das cadeias e nos becos e esquinas da periferia. Lea, Cocão e Chitara são irmãos. São os filhos de Ademar Laskeira. Lea nos conta que seu pai era dono dos puteiros da Ceilândia. Em meio a prisões e fugas, ele perdeu os puteiros, que Lea sonha em recriar. Ela quer fazer, ela mesma, o recrutamento das meninas. Lea gosta muito de mulher. Além dos puteiros, o pai de Lea tinha um arsenal. Ele era um CAC e ensinou a filha a atirar. No cinema brasileiro, acho que o pai de Lea é o primeiro ancestral que não é bonzinho. É um ascestral marginal, que gosta de dinheiro, de armas e de putaria. Ele conseguiu transmitir seus saberes.
“Mato seco em chamas” constrói e comprova, de forma exemplar, o que Adirley vem dizendo há muito tempo sobre seu cinema: é etnografia da ficção. Eu boto fé.

Alguém tem o telefone do Adirley aí?

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