O poder divino não deveria, em tese, jamais se misturar ao poder dos homens. Governos não deveriam ser guiados por dogmas. Caso contrário, a população vira massa de manobra, refém do medo do castigo dos céus, ou mesmo escravizada. Depois de viver um vislumbre de liberdade e de flertar com a democracia, o Afeganistão retornou ao inferno. Como não se escandalizar com as imagens de civis, desesperados, pendurados no trem de pouso de um avião que decolava em Cabul? Preferiram a morte a se transformarem em "mortos-vivos", submissos de um regime que impôs a leitura mais estrita do Corão a 38,3 milhões de afegãos.
Eu me recordo de quando os talibãs chegaram a Cabul. Era o meu domingo de folga, 15 de agosto de 2021. Lembro-me de como fiquei estarrecido ao ver a cena em que eles se apoderavam do Palácio Presidencial e as fotos das comemorações com tiros para o alto.
Nos meses anteriores, eu havia entrevistado por várias vezes Zabihullah Mujahid e Suhail Shahee, então dois porta-vozes do Talibã. Os dois sempre se mostravam solícitos a conversarem por meio do WhatsApp. O primeiro deles em pashtun, com a ajuda do Google Tradutor. O segundo enviou-me notas de áudio, em um inglês quase impecável. Os discursos de ambos parecia não flertar com o radicalismo ou o fanatismo religioso que governou, com mão de ferro, o Afeganistão entre 1996 e 2001.
Mas a retórica que parecia ensaiar algum tipo de abertura ao Ocidente parecia esconder os reais anseios da milícia fundamentalista. Logo que tomou o poder, forçando uma fuga tragicômica do então presidente Ashraf Ghani, o Talibã mudou o nome do Afeganistão para "Emirado Islâmico do Afeganistão". Em 456 dias, fez com que a vida da população descesse ao inferno, depois de duas décadas de alívio. A interpretação estrita da sharia (lei islâmica) retirou os direitos das mulheres. Impediu-as de estudar, fechou escolas de ensino médio para meninas, proibiu as afegãs de trabalharem fora de casa. Muitas foram obrigadas pelo Talibã a se casarem com homens bem mais velhos escolhidos por seus pais e a se tornarem donas de casa.
Saiba Mais
Seis dias atrás, os talibãs baniram a presença das mulheres nos parques de Cabul. Retiraram-lhes o último traço de liberdade, uma espécie de respiro em uma vida cada vez mais sufocante e ameaçadora. A mais recente manobra do Talibã decretou o retorno de uma nação ao inferno: a aplicação mais rígida da sharia ao sistema judicial. Em breve, veremos amputações, fuzilamentos, lapidações (apedrejamentos), enforcamentos em estádios lotados por civis apavorados e em praças públicas. O "Deus punitivo" ocupará o lugar do Deus de misericórdia. A comunidade internacional assiste à derrocada de todas as liberdades no Afeganistão e nada faz. O Ocidente tornou-se cúmplice da volta à barbárie.
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