Por Sacha Calmon — Advogado
É Luís Roberto Barroso, o melhor exegeta desse período histórico e jurídico de nosso povo: "O general Emílio Garrastazu Médici ascendeu à Presidência da República em 30 de outubro de 1969, após acirrada disputa interna nas classes armadas. Favorecido pela conjuntura econômica internacional, que propiciou o financiamento, a juros baixos à época, do "milagre brasileiro", em seu governo viveu-se um período de expressivo crescimento econômico, altamente concentrador da renda nacional...
A atividade política institucional foi relegada a um plano secundário, preterida por um novo estamento tecnocrático-militar. A censura à imprensa e aos meios de comunicação generalizou-se, paralelamente a uma ampla campanha promocional das realizações governamentais. Formaram-se numerosos grupos paramilitares de violência política e tortura, responsáveis pela eliminação clandestina de adversários, fora das situações de confronto armado.
Durante os governos Geisel e Figueiredo, as características do período Médici são mantidas, em que pesem o início e o prosseguimento da abertura política, "lenta e gradual". Geisel foi prussianamente imperial. Figueiredo, caricatural.
O governo dos generais caiu aos poucos, de maneira lenta e gradual, com a anuência de setores do próprio sistema. Alçado ao poder presidencial, ainda que indiretamente, conforme os preceitos da Constituição de 1967, em substituição ao último general-presidente, o Sr. Tancredo Neves morre antes de tomar posse, após longa e cruel agonia, que comoveu a nação inteira. Hábil político, pressentira a deterioração e o esgotamento do regime castrense. Lançou-se então nas ruas o maior movimento de massas de que se tem notícia na história do país em prol das "eleições diretas já". O regime não cedeu, mas não pôde evitar que o velho político reunisse em torno de si a quase unanimidade da Nação e de suas forças políticas.
Para tanto, idealizou-se um "pacto político nacional" ao redor de três pontos básicos: eleições diretas em todos os níveis; redemocratização do país e sua pacificação; a convocação da Assembleia Nacional Constituinte para edificar uma nova Constituição. Até lá, propunha-se um período de "transição democrática" com a remoção do entulho autoritário. Morreu, contudo, antes da posse. Sucedeu o presidente eleito (vindo da oposição) o vice-presidente José Sarney (egresso da situação), donde saíra na undécima hora para reforçar a "transição democrática" patrocinada pelo PMDB. José Sarney foi um governante de méritos e deméritos, mas cumpriu o calendário político proposto pelo seu antecessor. E, o que é mais importante, convocou a Assembleia Nacional Constituinte que gestou, alfim, a Constituição democrática de 1988.
O surgimento do documento constitucional de 1988, a 12 anos apenas do terceiro milênio, deu-se num contexto propício à democracia, e, portanto, procurou favorecê-la. É do seu tempo a histórica virada da Europa do Leste rumo aos valores políticos e econômicos do Ocidente e coincide nas Américas, do Centro e Sul, com os movimentos de redemocratização. De feitio altamente compromissório, em razão do entrechoque das correntes políticas que se embateram no processo de sua gestação, ela projeta uma Nação pluralista e democrática e um Estado fundado no direito, de forte conteúdo social-democrático.
No plano institucional, marca um reencontro emocional e não eivado de defeitos da Nação com o Estado. Prepara o país, riquíssimo em recursos materiais, para irromper no século 21 com uma civilização própria, sem conflitos étnicos, religiosos e problemas raciais, já amenizadas ou resolvidas as brutais diferenças de renda entre seus filhos ricos e pobres, a mais vergonhosa herança de um passado marcado pelo predomínio das elites que fizeram do Poder Político um instrumento de defesa de seus inaceitáveis privilégios econômicos. Talvez, por isso, tenha havido uma excessiva constitucionalização de valores, princípios e temas os mais diversos. Por trás desse movimento percebe-se a desconfiança e a ansiedade das pessoas e da sociedade em relação às leis comuns, dado que a imutabilidade ou a difícil mutabilidade das Constituições escritas e rígidas confere maior segurança aos princípios e postulados que se querem ver respeitados. Nem tanto. A CF/88 sofreu reiteradas emendas e o povo ainda sofre carências de todo tipo.
No plano que interessa, a Constituição brasileira de 1988 recolocou o controle jurisdicional da constitucionalidade das leis de maneira ampla, conectando-o ao sistema clássico de controle difuso, outro sistema de controle, concentrado no Supremo Tribunal Federal. Dito controle é desencadeado por órgãos representativos das instituições políticas e da sociedade civil. O modelo brasileiro afigura-se desde então misto, incorporando a experiência europeia e a norte-americana, com teórica vantagem sobre esses clássicos paradigmas.