CARLOS A. CINQUETTI - Ph.D. em economia, é professor Senior do Dep. de Matemática e Computação da Unesp
No programa eleitoral do primeiro turno, um candidato (vencido) exibe cenas da Faria Lima, da elite empresarial, e depois da Rocinha, da grande pobreza urbana no Rio. Pergunta, então, se não caberia um imposto sobre as grandes fortunas em favor destes desafortunados? Da única resposta induzida pelo contexto da filmagem, propõe bolsa de R$ 1.000, apoiada pelos dois candidatos do segundo turno.
Há várias alternativas a esse desacreditado imposto sobre grandes fortunas, mas o mais sério da análise acima é a visão facetada de sociedade. Na cena, aparecem o pobre e o rico, mas não o político, que entra apenas ao final, como o solucionador. O fato, porém, é que o Brasil tem uma carga tributária da Inglaterra e serviços públicos de muitos países em desenvolvimento. Ignorando esse problema, propõe-se aumentar a carga tributária, quando o alvo seria entregar ao público os impostos recolhidos.
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Suponhamos, para chegar a outro problema, que o país não seja o Brasil e que 100% do dito imposto vá para os pobres. Irá esse dinheiro na conta privada resolver a falta de água e esgoto, evitar um fome zero com saneamento zero? Irá conter a bandidagem que escorcha os humildes quando ganham dinheiro? Fazer com que as quatro horas por dia em transporte urbano se reduza para a metade? Trazer escolas que tragam efetivo domínio em matemática e escrita? A resposta é "não", pois esses são bens públicos e semipúblicos, cujo provimento não é assegurado, privadamente, por famílias e empresas. É a baixa oferta desses bens públicos a causa da desigualdade de rendas. O que nos aponta outro erro da dita proposta: ataca o efeito, não a causa.
A importância da distinção entre causa e efeito foi constatada em pesquisa deste autor com Marcel Voia. Descobrimos que as melhoras no índice Gini na América Latina (AL) não contribuíam para crescimento econômico. Isso só ocorria com o Gini endógeno (ajustado por) às melhoras na educação, em saneamento e em outros indicadores de capacidade estatal. Atesta que o drama dos moradores da Rocinha e tantas outras é a ausência de capacitações de competir pelas melhores oportunidades.
Fica a questão do porquê a preferência política por transferência na conta do beneficiário, em vez de priorizar maior provimento de bens públicos de amplo espectro. Por que não focar em equalizar capacitações dos indivíduos? A resposta é o clientelismo político; atender clientelas com grande potencial eleitoral, que também abarca regiões.
O clientelismo é mais comum em países subdesenvolvidos, onde alta pobreza e clivagens étnicas representam clientelas mais baratas e numerosas e onde regiões atrasadas significam coronéis locais e cidadãos passivos. Um arranjo socialmente viciado. Assentado em compromissos de grupos sociais a políticos que entregam bens exclusivos (empregos públicos e bens privados ou públicos de baixo espectro). Pesquisas mostram, ademais, que desigualdade econômica induz a um espírito mais desconfiado, menos cooperativo, dos mais pobres com relação a políticas.
O Estado deixa de ser público. E um dos pilares do desenvolvimento é a capacidade estatal de extrair recursos e servir o bem comum. Boa segurança, saneamento, ruas iluminadas, espaços públicos, estradas e escolas públicas de qualidade são o suporte dos países desenvolvidos. Formam as condições de um desenvolvimento inclusivo que fomentam, ao final, uma cultura liberal de criatividade e empenho individual e espírito cooperativo; de compromisso às regras.
Já as políticas clientelistas trazem, ainda, a eleição de políticos menos comprometidos com o bem comum, mais inclinados a condutas patrimonialistas. Uma mazela histórica do Estado brasileiro, patente nos apadrinhamentos de cargos em prefeituras e governos estaduais. Nas sinecuras do Judiciário e Legislativo. Nas rachadinhas e leis de impunibilidade aos políticos. Nos favores especiais de grupos de interesses.
Sem patrimonialismo e clientelismo, com maior capacidade estatal e mais políticas para o bem comum, toda sociedade ganha no longo prazo. A pobreza é menor e tem-se maior mobilidade econômica. Com mais chances de ascensão dos debaixo e de queda dos de cima. Num ambiente propício ao espírito industrioso se resolve outro drama do Brasil atual: a perda dos melhores talentos, os baixos investimentos.
Afinal a questão é eliminar não apenas as desigualdades domésticas, mas também a desigualdade frente aos países desenvolvidos. Sabendo que nem sempre se avança em ambas. Por vezes, o caminho da prosperidade rápida envolve ganhos dos empreendedores maiores do que os que se situam nos primeiros estratos de renda. Mas a renda deles cresce e ainda ganham um ambiente de maior mobilidade social.
O drama é que melhoras na capacidade estatal contradiz a lógica do poder político atual. Melhoras no provimento de bens públicos envolvem mudanças organizacionais e ações noutras jurisdições governamentais, que contrariam a lógica clientelística, pois o elo entre políticos e sua clientela é mais fraco. Envolvem, também, sacrificar o poder discricionário dos políticos e poderosos grupos de interesse. São as forças da persistência, da armadilha da pobreza.
Diante de tudo isso, o idealismo das propostas eleitorais como a do parágrafo inicial, nos remetem a B. Russell: um disfarçado amor pelo poder. De um país com arrecadação tributária na média do OCDE, na casa dos 32,5% do PIB, mas com segurança pública, as estradas, a qualidade das escolas públicas, a cobertura de saneamento, inferiores a muitos países com arrecadação de 22% do PIB.
Esse notável excedente de arrecadação sobre benefícios configura um peso morto do Estado. Um triste feito de nossa democracia, que teve uma expansão de 9% sobre o PIB entre 1993 e 2008, que induz a informalidade econômica e a persistência do subdesenvolvimento, entre outros por representar uma renda política em favor de um poder extorsivo. Daí a propriedade atual do teto dos gastos. (Agradeço sugestões de Vitória Saddi.)