Por JORGE ANTUNES — Maestro, compositor, professor titular aposentado da Universidade de Brasília (UnB), membro da Academia Brasileira de Música
Em 2022, estamos presenciando vituperiosos lampejos de inteligência. Preitos aos 200 anos da Independência do Brasil são atos de harpagão. Festejos do centenário da Semana de 22 são desimaginosos. Eventos lembrando a centúria do PCB são ausentes. É mister elevarmos um baldaquim sobre essas datas, para que possamos forjar novos, augustos e garbosos cidadãos: grandes cidadãos isentos de labéus; cidadãos plenos de louções e louros; cidadãos que, com atitudes plácidas, garantam-nos, de modo impávido, um porvir sem grilhões e cheio de esplendor.
Fiz questão de começar meu texto com esse estilo gongórico e ridículo para lembrar que é com esse estilo ridículo e gongórico que, até hoje, cantamos algo que também está completando 100 anos, em efeméride de que ninguém está se lembrando: a letra do Hino Nacional brasileiro.
Foi exatamente em 6 de setembro de 1922 que o presidente Epitácio Pessoa oficializou, por decreto, a letra gongórica e ridícula que ainda hoje cantamos. A letra é incompreensível para o povo brasileiro, não apenas porque fala de raios fúlgidos, de terra mais garrida, de impávido colosso, de lábaro e de clava forte. As formas indiretas de seus versos também impedem totalmente a compreensão. Só quem é afeito ao jogo e à permutação de palavras é capaz de descobrir que Osório Duque Estrada pretendeu dizer que "as margens plácidas do Ipiranga ouviram brado retumbante de um povo heroico".
A música que Francisco Manuel da Silva compôs em 1831, festejando a abdicação de Dom Pedro I, mudou de letra várias vezes, sempre com atos de cima para baixo por imperadores e ditadores. Nossos símbolos nacionais precisam ser revistos. Tem sentido, em pleno século 21, termos o lema positivista "Ordem e Progresso" escrito em nossa bandeira? Tem sentido, em pleno século 21, termos nas Armas da República, ramos de café e de fumo? Entendo que devemos tentar sensibilizar os artistas plásticos e os especialistas em heráldica, para que adotemos uma nova bandeira e um novo brasão.
Nosso primeiro hino nacional foi aquele que, hoje, é conhecido como Hino da Independência ("Já podeis da pátria filhos..."). Foi composto por D. Pedro I, com letra de Evaristo da Veiga. Segundo consta, o imperador escreveu esse hino durante a viagem a São Paulo, onde foi cantado na Casa da Ópera na celebração do fato ocorrido no Ipiranga. Tudo no mesmo dia 7 de setembro de 1822. D. Pedro I gostava de compor hinos. Um dos hinos escritos por ele foi adotado como Hino de Portugal até 1910.
A abdicação de D. Pedro I trouxe um novo hino, que celebrou justamente a sua queda. D. Pedro I tinha 32 anos de idade. Já totalmente desprestigiado pelo povo, partiu para a Europa com a Imperatriz. O povo festejou. Os jornais noticiavam a partida do indesejável ex-imperador com manchetes: "O dia de júbilo para os amantes da liberdade"; "A queda do tirano"; "Memorável Dia da Abertura das Câmaras Legislativas".
O hino de D. Pedro I passou a ser um "cântico proibido". Para celebrar a deposição de D. Pedro I, o compositor Francisco Manuel da Silva compôs o "Hino ao Grande e Heróico Dia 7 de Abril de 1831". É a música que cantamos até hoje. Claro que, na época, tinha outra letra: um poema escrito por Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva. Ou seja, a música que cantamos até hoje tem 191 anos e foi cantada, ao longo das décadas, com várias letras.
Assim, o Hino ao Sete de Abril foi escrito para festejar a abdicação de D. Pedro I, em 7 de abril de 1831, em favor de seu filho menor, D. Pedro II, que à época tinha 5 anos de idade. Foi a histórica Regência Trina, Provisória. Nas 12 estrofes do longo hino desfilava uma série de versos que agrediam o ex-colonizador português. Um dos versos dizia: "Os bronzes da tirania já no Brasil não rouqueijam". Outro verso dizia: "Arranquem-se aos nossos filhos, nomes e ideias de lusos". E mais adiante: "Os lusos são homens bárbaros, gerados de sangue judaico e mouro".
Em 1840, na maioridade e coroação de D. Pedro II, a música recebeu nova letra, do mesmo Ovídio Carvalho. Com a Proclamação da República, em 1889, o Hino Nacional passou a ficar sem letra. O poema que era cantado na época louvava a figura do Imperador. Mas Dom Pedro II fora banido do Brasil com toda a família imperial. Não tinha cabimento ser cantado um hino enaltecendo o imperador banido. Mas a música continuou a existir. Ela era tocada por bandas militares e civis, mas sem letra. Entre 1890 e 1922 o povo, gozador, cantava o hino com a seguinte letra: "Laranja da China, laranja da China, laranja da China. Abacate, limão doce e tangerina".
É difícil mudar os símbolos nacionais? A resposta é "não". A Constituição Cidadã é clara: "... são símbolos nacionais ... os adotados na data da promulgação da Constituição". Emendas, às quais nossa coitada Carta Magna está tão acostumada, logo nos fariam mais alegres deixando de ser retumbantes, plácidos, cheios de penhores vívidos, menos impávidos e colossais em berço esplêndido, largando as clavas fortes e os florões garridos, adotando novo lábaro.
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