Encerradas as eleições, o Brasil terá de se curvar à realidade e encarar problemas que hoje passam ao largo dos debates políticos. Um dos mais graves deles é o corte de recursos da área de saúde previsto na proposta de Orçamento da União para 2023, que está em tramitação no Congresso. Somente o programa de prevenção, controle e tratamento de HIV/Aids, infecções sexualmente transmissíveis e hepatite virais poderá ficar sem R$ 407 milhões, colocando em risco a saúde de milhares de brasileiros que contam com ações do governo para ter qualidade de vida. Um retrocesso sem tamanho.
É fundamental ressaltar que o Brasil foi pioneiro na prevenção e no tratamento da Aids. Ainda no início dos anos 2000, o país comprou uma briga com os maiores laboratórios internacionais para a quebra de patentes de medicamentos e, assim, garantir um coquetel que reduzisse os riscos de morte de pessoas com o vírus HIV.O conflito foi parar na Organização das Nações Unidas (ONU), que encampou a posição brasileira. O sucesso foi tamanho, que o Brasil se tornou referência no enfrentamento da enfermidade. E, mais importante, a partir do tratamento adotado, o total de óbitos foi quase a zero, pois doenças oportunistas foram controladas.
O temor entre pacientes e entidades que os representam é de que não só a oferta de remédios diminua, como não se adicione ao tratamento novos medicamentos que tenham eficácia comprovada para o controle de enfermidades. São muitos os relatos em várias regiões do país de que já se nota falta de fármacos em postos de distribuição do coquetel antia ids. Ou seja, antes mesmo de o corte de verbas ser sancionado pelo Congresso — espera-se que isso não aconteça —, pacientes sofrem para preservar a saúde.
"É um descaso com a saúde e com a história recente do país. O Brasil teve uma resposta exemplar à Aids em anos anteriores. Por que cortar o orçamento de um programa que é exemplar e que tem repercussão em outras patologias?", tem questionado Veriano Terto Junior, vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), responsável pelo Observatório Nacional de Políticas de Aids. O quadro se torna mais grave porque, ao mesmo tempo que se propõe a retirada de recursos de programas tão importantes, também não se investe em campanhas de esclarecimento e prevenção junto à população.
Apesar de o número de mortes por Aids ter diminuído muito, as infecções pelo vírus HIV continuam frequentes, e atingindo, sobretudo, os mais jovens. Dados do Ministério apontam que, de 1980 a junho de 2021, foram registrados quase 1,1 milhão de casos de Aids no Brasil, com concentração nas regiões Sudeste (50,6%) e Sul (19,8%), seguidas por Nordeste (16,5%), Norte (6,9%) e Centro-Oeste (6,2%). Especialistas ressaltam que o sumiço das campanhas informativas se deve a questões ideológicas, pois não se admite, dentro do governo, abordar o uso de preservativos e a educação social. Um conservadorismo perigoso.
O Ministério da Saúde assegura que, independentemente da proposição de cortes de verbas em programas prioritários, a população não será afetada e o atendimento continuará sendo feito dentro da normalidade. Afirma, também, que há espaço de negociação com o Congresso para que a área seja preservada de eventuais perdas de recursos dentro do ajuste orçamentário. Contudo, entre o discurso e a prática, há uma distância enorme. Quem precisa de tratamento não pode ficar à mercê de acordos políticos nem ser submetido a visões arcaicas, que nada têm a ver com a ciência. Com vidas não se brinca. Que famílias Brasil afora não tenham de enterrar seus entes por negligência e descaso por parte do poder público.
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