SALMO RANKIN - Pediatra e geneticista
Quando falamos de doenças raras, é inegável que nos últimos anos tivemos avanços significativos em termos de políticas públicas, conscientização, aceleração do diagnóstico e, principalmente, acesso a tecnologias inovadoras. Diria que hoje as doenças raras, felizmente, ganharam um espaço sólido na agenda política de saúde pública no Brasil. Um desses primeiros avanços, por exemplo, foi a Portaria 199/2014, do Ministério da Saúde — que instituiu a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, um passo importante para a comunidade, pois definiu uma política pública de Estado.
A maioria das doenças raras, até bem pouco tempo atrás, não contavam com tratamentos modificadores. Felizmente, hoje temos um cenário diferente e promissor para algumas dessas enfermidades raras, como é o caso da atrofia muscular espinhal (AME). Descrita pela primeira vez há quase 130 anos, trata-se de uma doença genética, rara, grave, e que até cinco anos atrás não contava com qualquer opção farmacológica que de fato mudasse a história natural da condição. Hoje, na data que escrevo, é com felicidade que temos registrados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) três tratamentos, nenhum deles promove a cura da AME, mas as três terapias modificadoras trazem importantes benefícios — e isso transforma a realidade de quem tem a doença.
O primeiro deles foi aprovado no finalzinho de 2017. Pouco menos de dois anos depois, em 2019, celebramos outra grande conquista: a incorporação do primeiro tratamento ao Sistema Único de Saúde (SUS), ainda que para uma população específica de pacientes. Mas já foi um primeiro e grande passo — isso porque não só o SUS passou a oferecer o tratamento de forma administrativa, como foi criada uma política de Estado para cuidar das pessoas que têm AME. No ano passado, tivemos mais avanços. O acesso ao tratamento foi ampliado para pacientes com o tipo II da doença —e aqui vale abrir um parêntese: a AME é classificada clinicamente em tipos (que vão do tipo 0 ao IV), com base no início dos sinais e sintomas e nos marcos motores atingidos pelos pacientes.
Pois bem. Apesar dos avanços, vivemos um momento desafiador. Atualmente, o Ministério da Saúde está atualizando o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) da AME 5q tipos I e II, documento que tem por objetivo nortear as melhores práticas a serem seguidas por profissionais de saúde, bem como direcionar critérios para o trabalho médico no SUS, incluindo diagnóstico, tratamento e manejo clínico. A atualização do protocolo se faz necessária porque mais um tratamento modificador para AME está sendo incorporado no SUS — fruto de muito engajamento e mobilização social.
Contudo, de acordo com a recomendação preliminar da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec), órgão técnico do Ministério da Saúde que avalia a incorporação de novas tecnologias no SUS, a ideia é que o PCDT seja estruturado a partir de linhas de tratamento. A atualização do documento prevê um tratamento para pacientes até dois meses de idade e outro para aqueles maiores de dois meses. E isso é preocupante e um verdadeiro retrocesso, uma vez que restringe o direito de escolha dos médicos.
O texto impõe uma regra que desconsidera a variabilidade das manifestações clínicas da doença, bem como a realidade em que os pacientes vivem. O Brasil é um país de dimensão continental e com desigualdades profundas. Ter mais opções farmacológicas na rede de saúde pública com administrações distintas é o que faz diferença para atender às necessidades clínicas e sociais da comunidade de AME em sua completude e integralidade - como preconiza o próprio SUS. Essa recomendação inicial por linha terapêutica prejudica a autonomia e a decisão médica, e isso também fica em desacordo com o posicionamento das principais agências de avaliação de tecnologia em saúde do mundo.
Soma-se a isso outro fator: essa proposta de atualização do documento não é baseada em evidências clínicas. A opção por linha de tratamento a partir de critérios não se sustenta porque as terapias modificadoras incorporadas no SUS têm perfil de eficácia e segurança comprovados. O exercício de debruçar sobre esse documento e analisá-lo mais profundamente faz surgir outras questões, ainda; o fato de o Ministério da Saúde não estar levando em conta o impacto orçamentário a longo prazo.
Precisamos mudar isso. Até 3 de outubro, está em vigor uma consulta pública que foi aberta pela Conitec. Por meio dela, toda a sociedade pode opinar sobre os critérios de atualização do documento. A comunidade de AME no Brasil está há muitos anos lutando para garantir que os pacientes tenham acesso ao tratamento — não faz sentido que agora seus médicos não tenham direito de escolha entre medicamentos aprovados pela Anvisa. Precisamos reverter essa situação, não podemos deixar que haja esse retrocesso.