ADÃO VILLAVERDE — Professor Escola Politécnica PUCRS e doutorando PPgECi — Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)LIVIO AMARALProfessor titular de física — (UFRGS)
A internet das coisas, a inteligência artificial, a realidade virtual, bem como a geladeira que se comunica com o supermercado são profundas mudanças estruturais e disruptivas do nosso tempo. Também o é a Lei Geral de Proteção dos Dados (LGPD), que em acordos entre países procura implementar o direito fundamental de todo ser humano ter assegurada a sua privacidade. O ponto basilar e comum de tudo isso, ativos tangíveis ou intangíveis, são os chips.
O Brasil tinha percebido há algum tempo a necessidade de indústria nesse campo e, em momentos distintos, tomou iniciativas. No início da década de 1990, com a Lei de Informática (nº 8.248/1991) e, depois, em 2002, com o Programa Nacional de Microeletrônica (PNM), que ocupou um papel estratégico na Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (Pitce) em 2003, associados a um conjunto de programas e ações que daí decorreram, até a metade da década passada.
Para ir em frente, como ocorreu nos países mais avançados, era necessário ter o papel fundamental do Estado na formulação de incentivos financeiros para formar capital humano, apropriação do conhecimento e competências no processo fabril desses dispositivos. Os esforços governamentais, empresariais, acadêmicos e da sociedade resultaram na formatação da fábrica brasileira de chips, conhecida como Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), no estado do Rio Grande do Sul. Quando implementada, no final da primeira década deste século, foi suportada por dois eixos fundantes decisivos para alinhar tal iniciativa.
De um lado, os estudos das Regiões com Potencial Tecnológico (Repots), que resultaram na ação chamada Porto Alegre Tecnópole (PAT), em 1995, reafirmando a vocação da capital gaúcha como locus para inovação. De outro, a iniciativa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) com o PNM brasileiro, referido acima, que produziu instrumentos fundamentais para fomento e financiamento setorial.
Naquele momento, a Motorola desativava sua fábrica de semicondutores nos Estados Unidos da América, vislumbrando potencial cooperação para transferência de seus equipamentos para o Brasil. E o RS, pela enorme capacidade instalada e por o projeto ser de uma fábrica de semicondutores e não somente um laboratórios científico-técnico, acabou atraindo a parceria, e a manufatura se tornou realidade única da América Latina.
E seguindo aquilo que em casos similares, internacionalmente se nominava de curva de maturação, até que receitas superem despesas, produtos começaram a aparecer, como por exemplo o chip do passaporte, encomendado pela Casa da Moeda do governo federal. Mas quando, fisicamente, ele estava pronto e com certificado global e a fábrica preparada para iniciar a produção, a encomenda foi interrompida e cancelada, com alegadas razões que não se sabe bem até hoje quais, de fato, foram. Logo quando estudos técnicos apontavam que, executada a encomenda, se teria um superavit de R$ 13 milhões para o ano de 2024.
De outra parte no mundo, no terrível quadro da pandemia da covid- 9, aconteceu falta de chips em escala planetária. Tal foi a magnitude do fato de que os Estados Unidos estabeleceram vultosos subsídios públicos para ter novamente fábricas em território americano. Fundamentalmente para diminuírem a dependência dos países do leste asiático, que dominam hoje mais de 80% da produção mundial.
Incompreensivelmente nesse contexto mundial, o governo brasileiro publicou no Diário Oficial da União, o Decreto nº 10.578/2020, de liquidação da Ceitec. Em base a um expedito fluxo de caixa autorreferido no Programa de Parcerias e Investimentos (PPI), que não guardou nenhuma relação com o Relatório de Atendimento de Metas e Resultados 2019 e outros instrumentos, emitidos periodicamente pelo MCTI. Contrário sensu aos países centrais, que neste momento buscam desesperadamente instalar esses modelos de fábricas em seus territórios.
Hoje, o processo de liquidação encontra-se no Tribunal de Contas da União, que já apontou irregularidades. Portanto, ou o órgão de contas decide pela retirada da Ceitec do PPI, ou um novo governo terá a inexorável responsabilidade de preservar a única fabricante de chips na América Latina, como um dever soberano e de segurança da nação.
Só assim o Brasil terá inserção tecnológica soberana na estratégia geopolítica mundial, consolidando sua posição no seleto grupo de países produtores de chips e ainda enfrentando o enorme desequilíbrio da balança comercial brasileira em dispositivos para a indústria eletroeletrônica.