Eu era um garoto, às vésperas de completar 12 anos. Morava em Goiânia, minha terra natal e símbolo de aconchego, de segurança e de paz. Estudava no Agostiniano, um tradicional colégio particular da capital de Goiás, localizado no Setor Aeroporto, a 1km de uma clínica radiológica abandonada onde tudo começou. Era uma terça-feira. Um dos coordenadores de disciplina entrou na sala de aula e determinou que todos ficássemos dentro dos limites da escola até a chegada dos pais. A justificativa pareceu-me estranha: um "acidente" tinha ocorrido perto do colégio. Uma cápsula de césio-137 havia sido aberta a apenas 13 minutos de caminhada dali, na Rua 26-A, em um depósito de ferro velho. A notícia sobre a liberação de radioatividade no meio ambiente somente foi divulgada 16 dias depois, naquele 29 de setembro de 1987.
Uma sombra de dor, de sofrimento e de medo pairou sobre Goiânia. Passaram-se 35 anos, mas me recordo do noticiário constante na tevê e no rádio. As imagens da gigantesca fila de cidadãos diante do Estádio Olímpico, onde foram submetidos à detecção de radiação com contadores Geiger. Do lado de dentro, no gramado, vítimas em estado menos grave ou com níveis anormais de radioatividade foram isoladas do mundo. As informações sobre a morte de Leide das Neves, a menina de 6 anos que comeu um pedaço de pão contaminado com o césio-137. Tudo era doloroso demais. A imagem de Devair Alves Ferreira, tio de Leide, sem cabelo e debilitado, segurando a foto da atriz Betty Faria, da janela do hospital.
Eu me recordo de escutar o álbum Help!, dos Beatles, e de como algumas músicas pareciam se confundir com todo aquele sofrimento. Talvez fosse uma válvula de escape. Depois, vieram o preconceito e a ignorância de pessoas que temiam que os moradores de Goiânia estivessem irradiados. Chegaram a arremessar pedras contra carros que viajavam, de férias, ao litoral, dois meses depois da tragédia. O cantor Moacyr Franco, à epoca, chegou a compor a canção Eu amo Goiânia, a fim de elevar o moral dos goianienses e se opor à discriminação sofrida pela população no restante do país.
Trinta e cinco anos se passaram. O trauma do maior acidente radioativo do mundo não foi apagado. Os locais por onde passaram a cápsula de césio-137 e o pó letal foram concretados. Dois anos antes da tragédia, em 1985, o mundo havia enfrentado o horror do desastre nuclear de Chernobyl. Hoje, a usina nuclear ucraniana de Zaporizhzhia, sob constantes bombardeios, corre o risco de recapitular todo o horror de três décadas atrás. Uma guerra em uma central nuclear é tão ou mais irresponsável do que uma cápsula de césio-137 abandonada em uma clínica radiológica no centro de uma cidade de mais de 1 milhão de habitantes. Além de irresponsável, é um estúpido ato suicida. Que o mundo evite uma nova catástrofe.