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Artigo: O sermão do bom ladrão

YCARIM MELGAÇO - Doutor em geografia humana na USP, pós-doutor em economia na Unicamp, pós-doutor em administração de organização na Fearp-USP e Professor MDPT Puggo

O que está por trás de uma expressão tão marcante, surpreendente e curiosa como o sermão do bom ladrão? Certo jesuíta, lá pelos idos do século 17, conhecido como padre Antônio Vieira, perambulou entre as terras tupiniquins e lusitanas e, nessas andanças, investiu-se de muito conhecimento e decide, então, escrever sermões. Vários, por sinal. Foi através desses escritos que o padre externou sua coragem; denunciou abusos de pessoas poderosas, entre elas, colonizadores, reis absolutistas, governadores arrogantes, autocratas gestores de cidades. E criticou até mesmo o tão temido Tribunal da Santa Inquisição da Igreja Católica.

Em um desses sermões, o padre, com bastante perspicácia e clareza em sua forma de linguagem, decide denominá-lo de O sermão do bom ladrão, no qual expressa com muita lucidez a realidade da época, englobando o Brasil Colônia e a metrópole portuguesa daquele tempo, século 17. Não é por acaso que o ambiente relatado por Antônio Vieira constitui um retrato fiel do Brasil de hoje.

Antes de falar sobre a obra em si, vale muito a pena conhecer um pouco desse ilustre escritor. padre Antônio Vieira nasceu em Lisboa, Portugal, em 6 de fevereiro de 1608 e veio a morrer em 1697. Foi missionário, teólogo, orador e diplomata. No ano de 1614, ainda criança, tinha apenas 6 anos de idade, mudou-se para o Brasil com a família; escolheram a Bahia, onde, desde 1609, seu pai exercia o cargo de escrivão.

Foi ordenado padre e iniciou a carreira de pregador a partir de 1633. Retornou tempos depois para Portugal, quando exerceu uma ativa vida política, colocando-se em defesa dos cristãos-novos, acabando, assim, por despertar ódio na Inquisição e, por isso, foi preso.

O Padre Antônio Vieira faz parte do barroco do Brasil e de Portugal, considerado por alguns como o principal autor dessa escola, devendo ser enquadrado à literatura luso-brasileira. A literatura barroca, inserida numa época de Reforma Protestante e Contrarreforma, é lembrada em grande parte pelo trágico período da Inquisição — aliás, momento assustador na história da Igreja e bastante desafiador para Antônio Vieira.

Padre Antônio Vieira passou à escrita 203 sermões. Em vida, foram publicados 190, cuja edição organizou e acompanhou. O grande conjunto é constituído por 182 sermões, que representam realmente a grande obra da sua carreira de pregador. O sermão do bom ladrão foi pregado na Igreja da Misericórdia de Lisboa, em 1655, diante de D. João IV e sua corte. Aliás, Antônio Vieira descarregou ali mesmo suas críticas sem a menor piedade aos absurdos cometidos pelos membros da corte, sem poupar sequer juízes, ministros e conselheiros de Sua Majestade, o rei. A culpa por delitos e roubos era sempre atribuída aos mais pobres, jamais aos poderosos.

Na verdade, esse sermão constitui um artefato de pregação e, ao mesmo tempo, de persuasão, num jogo de palavras entremeado de figuras de linguagem, com destaque para as metáforas. Diante do exposto, vou citar alguns trechos de O sermão do bom ladrão, proferidos então na Capela Real, naquele dia pelo padre Antônio Vieira: "Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres".

Nesse caso, destaca o papel dos privilegiados na sociedade e utiliza no plural "Alexandres", baseado em "Alexandre, o Grande", vencedor de várias batalhas. Segundo Antônio Vieira, os Alexandres roubam, mas, por ironia, acabam absolvidos nos tribunais: "O ladrão que furta para comer não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre e de mais alta esfera. Suponho finalmente que os ladrões de que falo não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza e vileza de sua fortuna condenou a este gênero de vida. [...] Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões." Portanto, O sermão do bom ladrão traz a história do Brasil de antes e de hoje com muita lucidez.

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