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Artigo: O sorriso de Gorbatchov

"O risco de um inverno nuclear não está de todo afastado. Mas a chance de esse derradeiro evento planetário ocorrer hoje é dezenas de vezes menor do que na primeira metade dos anos 1980"

O risco de um inverno nuclear não está de todo afastado. Mas a chance de esse derradeiro evento planetário ocorrer hoje é dezenas de vezes menor do que na primeira metade dos anos 1980. Ditaduras também persistem. Contudo, têm agora número bem menor que a média do século 20. Por fim, fome e subdesenvolvimento ainda castigam milhões, com a diferença de que há 30 anos essas mazelas não param de recuar, graças ao comércio globalizado, à acelerada inovação tecnológica e a uma maior conexão entre os povos.

Esse quadro que começou a ser pintado em 1985 é bem diferente daquele da Guerra Fria, no qual duas superpotências — União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e Estados Unidos — gastavam trilhões de dólares anuais para alargar o abismo a um passo da humanidade. Bastava o simples aquecimento dos silos de mísseis balísticos, o cruzamento de fronteiras por tropas estacionadas ou um singelo aperto de botão para o dia seguinte nascer cinza, radioativo e desalentador. As páginas dos jornais eram boletins diários do angustiante xadrez geopolítico.

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Essa alucinada novela de temeroso epílogo saiu do ar de vez por mérito de um só homem: Mikhail Sergeievitch Gorbatchov, morto na noite da última terça-feira, aos 91 anos. A estatura moral e política desse estadista russo, o oitavo e último líder da União Soviética, até o desaparecimento do então mais extenso país, em 1991, é uma das maiores já notadas. Também foi gigante o seu sorriso, capaz de degelar relações internacionais, forjar improváveis acordos e nos fazer sonhar com alvissareiro futuro alternativo.

Com persistência e habilidade, Misha, Gorby, Gorba, entre tantas alcunhas carinhosas que mereceu, tornou-se o ator principal das cenas finais do milênio passado. Ele não encerrou a História, como sugeriram alguns, mas deu a ela outros caminhos. Suas palavras e gestos mudaram o curso de acontecimentos mundiais de forma profunda, definitiva e para melhor. Por isso, somos devedores da sua coragem para mudar realidades, tocar feridas e desmontar a engrenagem do relógio do fim do mundo.

Ninguém pode dizer ao certo o que seria das últimas três décadas do século passado caso Gorbatchov não tivesse emergido ao comando da URSS e ao palco global. Mas é fato que o apocalipse atômico estava à mercê de ruídos de comunicação em aparelhos de defesa e canais diplomáticos, de bugs em radares, desleixo de burocratas e arroubos de chefes de Estado. A era que surgiu após a sua passagem pelo poder trouxe, contudo, novas aflições, tais como pandemias, terrorismo religioso e aquecimento global.

Apesar dos desdobramentos imprevistos da nova ordem mundial, o fato a ser reconhecido por todos é que gozamos da oportunidade de decidir sem as amarras do contexto bipolar e da insana corrida armamentista. E isso só é possível graças a Gorbatchov. Por isso, quando analistas o classificam só como titubeante mandatário do império soviético, responsável pelo seu fim, e coveiro do comunismo patrocinado por Moscou, com o prosaico prêmio de consolação de ser amado pelo outrora inimigo Ocidente e rejeitado pelos compatriotas, comete-se enorme injustiça.

Gorbatchov iniciou complexas reformas para arejar a economia planificada (Perestroika) e colocou em marcha a distensão política doméstica (Glasnost), mas a revolução que deflagrou tomou rumos próprios, perdendo a coesão interna da URSS e, por fim, sendo tragado por ela. Mas o legado inquestionável da sua trajetória está aí com a reunião de famílias e nações separadas pelo Muro da Vergonha, o arrefecimento do medo constante e o cessar da máquina de extermínio que havia chegado literalmente ao espaço, com projetos de satélites armados.

Qual foi então o grande erro do líder nascido numa comunidade rural no Sul da Rússia? Quem sabe talvez esteja na própria boa vontade, que gerou esperança e entusiasmo, mas também conspiração de oligarcas e ressentidos com a fim da influência e a emergência de sucessores com outra visão. Andrei Gromiko, célebre chanceler que serviu a vários governos soviéticos, dizia que o sorriso simpático de Gorbatchov escondia dentes de aço. O diplomata tentava aí dizer que o urso até era fofo como a mascote das Olimpíadas de 1980, mas ainda era um temível urso.

Ocorre que o urso Mikhail Gorbatchov era um homem bom, carismático e absolutamente contrário a usar a força bruta dos czares para fazer valer suas nobres intenções. Sabia ser isso contraditório e acreditava no entendimento, na paz, na liberdade e no progresso não como concessões de poderosos a comandados, mas bens a serem compartilhados por todos. Obrigado, camarada.

*Sílvio Ribas é Jornalista, escritor, consultor em relações institucionais e assessor parlamentar no Senado Federal

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