violência

Artigo: Um fenômeno chamado orixá e a intolerância religiosa

Correio Braziliense
postado em 24/09/2022 06:00
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

HENRIQUE ARAÚJO DA SILVA - Filósofo, teólogo e pedagogo, é gestor do Instituto Sartre, sacerdote do culto de Ifá e Orixá, escritor, cantor e compositor

Cada dia mais os noticiários e redes sociais trazem informações sobre a violência e suas multifaces. Um tipo específico de violência vem aumentando drasticamente, apesar dos avanços da democracia — a intolerância religiosa. Essa consiste em agressão verbal e física contra praticantes de religiões de matriz africana. Preciso fazer o grifo de que estas manifestações religiosas africanas estão divididas por linguagem e expressões diferenciadas, o que recebe o nome de nação. O termo orixás pode ser traduzido por guardião da cabeça, ou simplesmente por ancestral divinizado. Esses ancestrais acredita-se que foram os primeiros habitantes ou primeiros líderes de etnias ligadas diretamente à família do criador do mundo, Olodumare.

O povo yoruba e os afro-brasileiros prestam culto a eles, nas mais variadas formas como culto de egungun, minkisi, caboclos, voduns, umbanda, jurema, candomblé angola, ketu e outros, porque eles adquiriram o que chamamos de iwá pele que significa bom caráter, ou seja, o Orisá é um sujeito que foi divinizado porque na Terra foi dotado de bom caráter, caráter este excepcional, fazendo com que a sua descendência e a sua comunidade o venerassem por entender que nele havia de fato algo a ser copiado.

Não muito diferente disso, o modelo cristão católico reconhece por feitos e comportamentos maravilhosos os seus santos, e a eles devotam templos, festas e devoções. Os cristãos protestantes também devotam cultos a Jesus, e um culto especial aos textos judaicos e textos cristãos denominado Bíblia, e há ainda uma devoção especial ao Espírito Santo, como sendo o agente que transmite a força de Deus para os homens.

Fiz esse pequeno paralelo porque, por força da colonização, fica mais fácil a compreensão a partir desse comparativo. Cultuar o Orisá nada mais é do que referenciar aqueles que a partir de seu modelo tradicional tiveram feitos bons e ajudaram tanto em vida quanto espiritualmente os seus. Na história da formação do nosso povo, as culturas africanas foram alvo de preconceito. E acreditamos que o preconceito começa ainda em África. No século 14, período da expansão marítima, os papas Nicolau V e Alexandre VI passam a orientar o tratamento que deveria ser dado aos povos subjugados por meio das bulas Romano Pontifex e Inter Coetera e aliado a isso a inauguração do sincretismo religioso do orixá Exu, que para os iorubás é a divindade responsável pela comunicação, ao diabo cristão.

Os primeiros europeus que tiveram contato na África com o culto do orixá Exu dos iorubás, venerado pelos fons como o vodum Legba ou Elegbara, atribuíram a essa divindade uma dupla identidade: a do deus fálico greco-romano Príapo e a do diabo dos judeus e cristãos. A primeira por causa dos altares, representações materiais e símbolos fálicos do orixá-vodum; a segunda em razão de suas atribuições específicas no panteão dos orixás e voduns e suas qualificações morais narradas pela mitologia, que o mostra como um orixá que contraria as regras mais gerais de conduta aceitas socialmente, conquanto não sejam conhecidos mitos de Exu que o identifiquem com o diabo.

Atribuições e caráter que os recém-chegados cristãos não podiam conceber, enxergar sem o viés etnocêntrico e muito menos aceitar (Prandi, 2001, p. 38). É necessário esclarecer que a intolerância religiosa é fruto de uma semente plantada muito tempo atrás nas nossas mentes e que só conhecendo o conceito da religiosidade para os povos africanos é que venceremos a barreira da ignorância e do medo que cerceiam o imaginário coletivo.

É importante dizer que a melhor maneira de mantermos o que sobrou de África em nós é por meio do culto aos Orisás e da preservação das manifestações culturais que estão tão presentes na música, no vestuário e na culinária, pois essas manifestações culturais são oriundas do culto aos orixás que nada mais é do que uma memória aos nossos ancestrais.

Cultuar o Orisá é uma busca contínua por uma identidade, e uma evolução espiritual. Quem sente o axé com certeza tem a vida alterada, e é isso que é o Orixá, a alteração de nosso estado comum, nos tornando melhores, nos tornando seres de bom caráter, a fim de que nossa descendência tenha orgulho de nós e conte nossa história para as futuras gerações.

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