Em mais uma estação seca, o bioma que ocupa aproximadamente um quarto de todo o território brasileiro, segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) — e que talvez seja entre todos o mais negligenciado —, é devorado novamente pelo fogo em proporções assustadoras. Com 2 milhões km² e áreas de influência que chegam a se estender por unidades da Federação praticamente inteiras, como Tocantins, Goiás e o Distrito federal, e por grande parte de outras, caso de Minas Gerais, o cerrado é a formação que foi mais consumida pelas chamas até o mês de agosto deste ano, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Com 66.625km² transformados em cinzas nos oito primeiros meses de 2022, o bioma de árvores retorcidas teve no período o quadro mais crítico dos últimos seis anos em relação às queimadas. Desde 2016, a formação que é considerada a savana mais biodiversa do planeta não queimava tanto, aponta o Inpe. E em setembro, mês em que tradicionalmente se concentram os picos de incêndios florestais, a situação não melhorou: foram mais de 9 mil focos de calor detectados pelo satélite de referência do instituto apenas nos 16 primeiros dias do mês.
Ainda de acordo com os dados do Inpe, em termos de área queimada no mês de agosto, o cerrado liderou o ranking, com 28,2km² devastados pelo fogo, ou 48,9% da vegetação total perdida pelo país para as chamas. Para efeito de comparação, a Amazônia, onde as queimadas costumam provocar impacto bem mais severo na opinião pública e despertar muito mais atenção, inclusive no cenário internacional, ficou em segundo lugar, com 24 quilômetros quadrados consumidos em incêndios, ou 41,7% do território nacional reduzido a cinzas no período.
Quando se considera a soma dos oito primeiros meses de 2022, porém, a disparidade assusta. Sempre segundo dados coletados via satélite pelo Inpe, os 66,6 mil km² de cerrado atingidos pelo fogo no período representam 85,6% mais que os 35,8 mil km² devastados pelas chamas na Amazônia brasileira até agosto deste ano.
Embora a preservação amazônica seja motivo de justa preocupação da opinião pública planetária, chama a atenção o fato de a devastação do cerrado ser tão negligenciada. Se não por sua importância natural, ao menos por ser imprescindível à própria economia do país. Uma das fronteiras e expansão do agronegócio — e pressionado exatamente por isso —, o bioma cujo aspecto seco parece um convite ao fogo tem importância marcante exatamente por sua riqueza hídrica, garantindo um recurso sem o qual nenhuma lavoura prospera. Nenhuma atividade humana, na verdade.
Dono de um tesouro líquido, seu subsolo é fonte de nascentes que, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), alimentam oito das 12 regiões hidrográficas brasileiras, com destaque para três: a bacia dos rios Araguaia/Tocantins, que tem no bioma a origem de 78% de suas águas, a Bacia do São Francisco (70%) e a Bacia do Rio Paraná (48%). Não é à toa que a própria Embrapa trata o cerrado como o "pai das águas no Brasil".
Considerando ainda o fato de a formação abrigar fauna estimada por especialistas como equivalente a 5% do total mundial e cerca de um terço da brasileira, além da projeção de manter 12 mil espécies da flora, é difícil compreender a pouca atenção que a preservação do bioma merece, não apenas de autoridades, mas da opinião pública mundial. Segundo o projeto MapBiomas, iniciativa que envolve universidades, empresas de tecnologia e ONGs, o cerrado perdeu apenas de 1985 a 2020 cerca de um terço de sua cobertura vegetal. Restam 54,4% de vegetação nativa, segundo a mesma fonte.
Conter o avanço do fogo sobre essa vegetação e cuidar para que a pressão da agropecuária se dê de forma minimamente sustentável é o mínimo para esperar que o bioma siga resistindo.
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