passarela

Artigo: Voando alto

Correio Braziliense
postado em 17/09/2022 06:00
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

NILDA FELISBERTA CORREA DE FREITAS - Manequim e sócia da Sociedade Floresta Aurora

Nasci no interior de Cachoeira do Sul, no quilombo gaúcho de Cambará. Sou a quinta filha de 13 filhos de Manoel e Luiza Correa. Fui alfabetizada no quilombo, onde estudei até a quarta série, seguindo até a oitava em Cachoeira do Sul. Sempre sonhei voar alto, imaginava aviões e eu lá no alto, sendo resgatada. Pensava em sair do meio do mato, porque tinha muitos afazeres desde pequena, principalmente com os cuidados dos meus irmãos menores e trabalho no campo. Trabalhei como doméstica desde os 12 anos de idade e, em 1962, com 14 anos, fui morar em Porto Alegre, onde fiz supletivo e concluí o segundo grau.

Em 1970 participei do concurso Rainha do Esporte, da Sociedade Floresta Aurora. O prêmio foi uma viagem a Montevideo, no Uruguai. Lá fiz eventos e aparições na TV. A repercussão rendeu autoconfiança e o desejo de fazer carreira como manequim. De volta a Porto Alegre, me inscrevi num curso de passarela, mas, sem condições financeiras, pensei em desistir. Foi quando a própria dona da empresa, vislumbrando meu potencial, encomendou que eu fizesse a inscrição num programa de televisão que "realizava sonhos", chamado A caminho da grande chance, na TV Piratini — Canal 5. Aceitei a sugestão e me inscrevi para conquistar o curso de manequim.

A seleção tinha várias etapas, todas eliminatórias. Saí vencedora como manequim revelação, de prêmio, ganhei um guarda-roupa completo da loja Marinha Magazine, um toca-fitas e o tal curso de manequim. Passei a desfilar por todo o estado. Era a primeira negra. Desfilei para várias grifes e em Porto Alegre para Milka, Ruy, Casa Masson, Casa Louro, Lojas Renner, Salem, Europeia, Tabajara, Lenart´s, Escosteguy, Tiarajú Modas, Viva Vida, Von Von, Casa Lú, Korrigan, Casa Ela etc.

Falar de racismo me é caro. Recordo situações desagradáveis. Sei que sobrevivi na passarela por ter garra, já que a discriminação corria solta. Desbravar era dolorido ao perceber por vezes que eu era atração por ser negra, não pelo meu talento. Ainda ficava sabendo pelas costureiras e por colegas que as lojas não queriam que eu usasse as roupas porque depois teriam dificuldade em vender ao saberem que tinham sido usadas por mim, uma negra. Os olhares eram discriminatórios, eu não era reconhecida como modelo fora das passarelas. Uma mulher alta como eu, negra e em ambiente não frequentado por negros sempre era constrangedor em função dos olhares, da hostilidade e comentários.

Ainda e mais cruel, era ir aos ensaios que eram realizados durante a tarde nos clubes das cidades, para os desfiles à noite. Quando chegava para entrar no ensaio, era barrada, sobalegação de que não era sócia. Eu sabia que não era por isso, não arredava pé e entrava. Sofria sozinha e calada, mas certa que aquele era o lugar onde queria estar. Em todos os momentos e em todas as ocasiões busquei afirmar meu valor, mas, apesar disso, as oportunidades e o reconhecimento eram limitados, pois nunca fui a noiva nos desfiles, que é a coroação para os manequins.

Eu me superava. Até calçados 38/39 usei, quando calço 40/41. Eu caminhava rápido, ap assos largos para não mancar e não perceberem. Eu queria estar ali a qualquer custo. Ainda, as roupas mais bonitas nunca eram destinadas a mim, mas quando eu entendia a mensagem subliminar, meu sonho de voar alto me acordava e eu fazia um grande desfile para vender a roupa, e conseguia. Isso me realizava.

Nem sempre eu recebia cachê. Às vezes, era recompensada com roupas. Se havia diferença de valores nos cachês, eu não ficava sabendo. Eu estava no meu alto voo. A realização foi quando pude sobreviver e garantir o sustento de minha família com minha profissão. Eu me sindicalizei logo que o sindicato foi criado e, para minha alegria, era dirigido por Celso Luiz Rodrigues, um negro. Até 1974 era somente eu de negra nas passarelas. Logo veio a Isabel Brito.

Mesmo pensando em desistir nas vezes em que a pressão era intensa, eu pensava: plantei uma semente com tanta vontade que sei do meu sucesso e minha família e eu colhemos os frutos. Não podia deixar de dizer que minhas conquistas tiveram apoio incondicional de minha família, em especial meu marido Valderli Freitas, meu filho Victor e meus netos Betina e Bernardo. Tenho muitos agradecimentos a fazer. Um deles é a minha produtora e amiga Nereidy Alves, que me ajudou com esse texto.

Hoje, aposentada pelo INSS e com 73 anos na ativa, mantenho a mesma linha elegante, exercendo atividades de convívio familiar e social, com intensa agenda de eventos, apesar de um AVC que me deixou suaves sequelas em 1993. Continuo voando alto.

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