JANUARIO MONTONE - Primeiro diretor presidente da ANS, foi secretário de Saúde da Cidade de São Paulo
Tem faltado um pouco de contexto histórico e alguma boa-fé ao debate atual sobre o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). O rol define a cobertura assistencial obrigatória dos planos e seguros de saúde. É um avanço civilizatório que precisa ser mais bem compreendido, comemorado e, sobretudo, respeitado.
A poeira do tempo fez com que muitos se esquecessem da verdadeira selvageria que imperava no mercado de saúde privada no Brasil. As regras para as operadoras em geral eram bastante frouxas, para dizer o mínimo, e apenas as seguradoras estavam sujeitas a um controle mais específico. Era mais fácil abrir uma operadora de planos do que uma padaria, obrigada a atender à legislação sanitária, expondo os consumidores a todo tipo de picaretagem.
A cobertura assistencial não era padronizada, valia o contrato, e cada operadora estabelecia o que ia cobrir e, principalmente, o que não ia cobrir. Praticamente, nenhum plano cobria hemodiálise ou tratamentos oncológicos, por exemplo, bancados apenas pelo SUS.
A lei dos planos de saúde (n° 9656/1998) veio para pôr ordem nessa bagunça e dar aos consumidores e ao próprio mercado o que até então eles não tinham: competitividade, segurança, previsibilidade e estabilidade. A legislação foi uma conquista de todo o sistema de saúde brasileiro, pois tirou das costas do SUS os procedimentos de média e alta complexidades que os planos não cobriam, ampliando a capacidade de atendimento para a maioria SUS dependente da população.
A regulação foi sistêmica, mas o rol de procedimentos foi, e é, um dos seus pilares mais importante, senão o mais importante. Ao estabelecer o que todas as operadoras tinham que oferecer para todos os beneficiários, indistintamente, de forma não discricionária e não arbitrária, igualou a todos numa condição elevada, única e horizontal de cobertura.
O rol nasceu taxativo e assim deve continuar sendo. Também é assim em todos os sistemas de saúde organizados. Não existe nenhum sistema de saúde, por mais avançada e rica que seja a economia, que não tenha parâmetros e protocolos de cobertura e, portanto, limites.
O rol taxativo não é exclusividade dos planos de saúde. Também é assim no SUS, com a Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias) definindo o que deve ser coberto ou não no âmbito da rede pública de saúde. Porque, repito, assim é e deve ser em qualquer lugar sério do mundo.
As operadoras eram contra o rol exatamente por não ser apenas um exemplo, mas uma obrigação, portanto, taxativo. O governo federal de então teve a coragem e competência de articular o apoio do Congresso e regular a cobertura assistencial obrigatória dos planos e seguros de saúde. Contra tudo, contra todos e de forma inédita, a favor dos consumidores.
O resultado é que, hoje, independente de quando e de quem você adquiriu seu plano, a cobertura contratada é sempre a versão mais atualizada do rol da ANS que hoje conta com mais de 3.370 — aliás, é importante notar que a lista obrigatória nunca deixou de crescer e hoje é quase três vezes maior do que era 24 anos atrás. O rol inclui medicamentos oncológicos ainda não disponíveis no SUS.
Infelizmente, o Congresso acaba de aprovar uma lei confusa, pouco debatida, de difícil aplicação no mundo real e que pode representar o início do fim da regulação dos planos de saúde, definindo o rol como uma mera referência e jogando o setor na incerteza.
Espero que o Supremo Tribunal Federal aprofunde o debate e reconheça os enormes impactos negativos, em especial para os consumidores, que vão pagar uma conta permanentemente em aberto, e apoie a definição de rol taxativo feita pelo Superior Tribunal de Justiça, com as ressalvas que definiu. O rol vem salvando muitas vidas ao longo desses anos e eliminar seu caráter obrigatório é romper a barragem que defende os consumidores e abrir espaço para aventuras.
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