ALMIR PAZZIANOTTO PINTO - Advogado, foi presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST)
Exige exame isento de paixões a decisão cautelar do ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.222, ajuizada para suspender até julgamento final a aplicação da Lei nº 14.434, de 4/8/2022, que institui o piso salarial nacional do enfermeiro, do técnico de enfermagem, do auxiliar de enfermagem e da parteira.
Evito tratar do tema sob o ângulo do merecimento. Entendo que todo empregado, ou servidor público, tem direito a salário justo que lhe permita satisfazer "as suas necessidades normais de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte", como diz o art. 76 da CLT.
Diante da crise econômica que se arrasta há várias décadas, seria ir longe demais tentar converter em realidade o inciso IV do art. 7º, da Constituição, cujo texto confere ao trabalhador urbano e rural o direito de receber "salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim". Por haver deixado o Ministério do Trabalho alguns dias antes da promulgação, Deus me poupou do constrangimento enfrentado pelos meus sucessores, impotentes para nem sequer reivindicar a aprovação da lei que tornaria concreto o utópico anseio constitucional.
O salário mínimo vigente é de R$ 1.212. Longe está de corresponder às exigências da regra até hoje não excluída da CLT. O mínimo constitucional, entretanto, por não passar de vaga aspiração, permanece fora das cogitações do Congresso Nacional, dos sindicatos e centrais sindicais, tão distante se encontra o Brasil que conhecemos.
Os autores da Lei 14.434/2022 procuram acudir a apelos dos trabalhadores em instituições de saúde. Se objeção merecem, decorre de não haverem examinado a relevante questão social por todos os lados. Preocupados em satisfazer as reivindicações profissionais, ignoraram que nem todos os estabelecimentos de saúde, públicos ou privados, dispõem de recursos financeiros para satisfazer repentino aumento de despesas com mão de obra auxiliar.
Ao tomar conhecimento da lei, lembrei-me das Santas Casas de Misericórdia, que conheço em municípios do interior de São Paulo, de hospitais que dependem do Sistema Único de Saúde, e de todos que praticam filantropia. A epopeia da Misericórdias, escrita por Niversindo Antonio Cherubim, religioso da Ordem dos camilianos, filósofo, teólogo, administrador hospitalar, é excelente documento sobre a matéria.
No Brasil a primeira Santa Casa foi a de Santos, fundada em 1543, seguindo-se as de Salvador, 1549, Rio de Janeiro, 1567, Vitória, 1819, São Paulo, 1599. Existem hoje centenas de instituições do gênero, havendo, entre elas, um traço em comum: lutam com extremas dificuldades para não encerrar as atividades e deixar populações pobres desassistidas, por falta absoluta de recursos.
Os pisos salariais de R$ 4.750 para enfermeiros, de R$ 3.325 para técnico de enfermagem, de R$ 2.379 para auxiliares de enfermagem e parteiras, não deixam de ser justos para quem vai recebê-los, mas estão muito além de numerosas instituições filantrópicas e Santas Casas de Misericórdia que não dispõem de meios para pagá-los.
A CLT cometeu grave erro no art. 2º, quando equiparou a empresa, organizada para realizar lucros e distribuí-los aos proprietários, com profissionais liberais, instituições de beneficência, associações recreativas e culturais, entidades filantrópicas, Santas Casas de Misericórdia. O dispositivo permanece intocado desde 1º de maio de 1943, apesar de infringir a regra áurea legada por Rui Barbosa, segundo a qual para que haja justiça é necessário tratar desigualmente os desiguais.
A solução não consiste em fechar as portas de casas de saúde, como a Santa Casa de Misericórdia de Capivari (SP), de Maragogipe (BA), de São Gabriel da Cachoeira (AM), de Bataguassu (MS), de Cruzeiro do Sul (AC) e de centenas de outras do mesmo gênero, dependentes do Sistema Único de Saúde, de parcos recursos municipais, e da caridade, para atender famílias carentes da região. A lei foi aprovada no vácuo, fruto de boas intenções ou de reles interesses eleitorais. A medida cautelar deferida pelo ministro Roberto Barroso abre oportunidade para as discussões fundamentadas, que ainda não houve.
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