JORGE FONTOURA - Professor e advogado
O falecimento de Mikhail Gorbatchev, em meio ao alarido belicista de Wladimir Putin, com sua guerra a destempo e revelia da civilização e da história, repercutiu para além do mero obituário, evocado como louvado e reconhecido estadista. Gorbie, no apelido afetivo que o ocidente lhe dedicou, o último premiê soviético de fato entra para a galeria de vultos a celebrar mais pelo que impediu que se fizesse, do que pelo que de fato fez, no rearranjo da Rússia da glasnost (reforma política) e da perestroika (liberalização).
Com a dissolução do império soviético, a par da derrocada do projeto dirigista das utopias autoritárias, era necessário reposicionar a Rússia. Encontrar saída aceitável para o gigante moribundo, que sobrava e soçobrava, sem tolher-lhe a dignidade histórica de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. O desmonte das oligarquias viciadas, a par do esforço para construir uma nova relação com os vizinhos e com o mundo foi um imenso desafio.
Também, a economia destroçada pelos imperativos ideológicos e por seguidos desgovernos belicistas não alentava. Contudo, ficará para a antologia da inteligência política a habilidade de Gorbatchev em lidar com complexas agendas internas e externas concomitantes, desde a transição da união à desunião soviética, bem como as relações diplomáticas de alta sensibilidade com a China e as então designadas Comunidades Europeias — além do notório parceiro-adversário da guerra fria, na expressão de Raymon Aron — os Estados Unidos.
A busca de liberalização política e de abertura ao mercado e ao ocidente como solução de choque, adotada como novo modelo, a não permitir, ou a pelo menos adiar a virulência das guerras internas, mostrou-se providencial. Basta lembrar, como tristemente constatamos em seguida da implodida e massacrada ex-Iugoslávia, prenúncio trágico do que hoje assistimos. Ao evitar banho de sangue, inútil pela démarche inexorável da história, como ainda haveremos de constatar no presente conflito pan-eslavo, também Gorbie foi admirável. Depois, no devenir da memória, se, por um lado, como gestor da ruína Mikhail Gorbatchev foi responsabilizado pelos ultranacionalistas por toda a derrocada da ex-União Soviética — e até pelos muros que se dissolviam no ar — por outro, foi reconhecido na prevenção de tragédias imensuráveis, ao agir no controle de arsenais atômicos das subpotências que restavam desgovernadas no colapso socialista.
O fim de século que se viveu, com o rescaldo da guerra fria e apaziguamento dos deserdados da cortina de ferro levará nome e sobrenome. Também no que concerne a revalorização da aura russa no ocidente, como constructo de possível pertencimento comum pelo compartilhar cultural que o premiê sorridente acabou por refazer despertar. Nesse sentido, era o líder culto, educado e confiável, a resgatar o quê russo da alma clássica tão marcante na cultura universal, seja pela literatura imortal de Tolstói, Dostoiévski, Tchekhov, Pasternak, seja pela música indelével de Tchaikovsky, Rachmaninov ou Stravinsky. Da literatura, um singelo exemplo: "Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira", como célebre no intróito de Ana Karenina, de Leon Tolstói, é dizer literário de domínio comum, do acervo universal, não estrangeiro a qualquer asiático, africano, americano ou europeu instruídos.
Ao final, célebre por sua aposentadoria de cidadão do mundo, sempre convidado de governos, de festivais e de congressos, Gorbie notabilizou-se como persona sempre bem-vinda, e mesmo ícone publicitário, a transcender a política internacional, contribuindo para a humanização do poder e para a interação pacífica entre as superpotências.
Eric Hobsbawm, o historiador da guerra fria por excelência, resumiu de forma singela o perfil de Mikhail Gorbachev, como um dos homens essenciais de seu e de todos os outros tempos: "Íntegro e notoriamente bonachão, suas ações foram marcantes. Como secretário geral do Partido Comunista Soviético, a partir de 1985, suas escolhas condicionaram a estabilidade regional e a ordem internacional. Ser seu contemporâneo é um privilégio. A humanidade sempre estará em dívida com ele", afirmou o historiador.
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