Fôssemos reduzir e comparar a união ou relação estabelecida entre a sociedade brasileira e o Estado ao matrimônio, por certo, esse casamento estaria nas barras dos tribunais de família, envolto num processo ruidoso de divórcio litigioso. Nenhum juiz de paz neste mundo, ou conciliador, por mais capaz que seja apto a mediar e estabelecer pontes seguras entre a população e o Estado, conseguirá promover uma convivência harmônica, enquanto perdurar a apropriação desmedida das elites políticas sobre as instituições e os poderes.
Caminhar pelas principais ruas das metrópoles deste país, observando com atenção todo o entorno, é possível ter uma pequena mostra desse fosso imenso e, cada vez mais, alargado, entre a nação e o Estado. A questão é saber quanto tempo durará essa "paz de cemitério" entre o casal, até que haja uma ruptura brusca e violenta. Tomando a população pelo gênero feminino e o Estado, pelo masculino, dentro de um país, reconhecidamente, campeão mundial em feminicídios, fica subentendido que, nessa relação abusiva, não está totalmente descartada a possibilidade de cometimento de mais um crime dessa natureza.
Na verdade, as mortes diárias nas ruas do país, tomado pela violência, somadas às mortes nas filas intermináveis dos hospitais e toda a sorte de destino trágico experimentado pela população, dão indícios suficientes de que está havendo crime contra a vida.
O problema poderia ser resolvido, em parte, fossem eliminadas as desigualdades econômicas e a indiferença do Estado em relação à questão. Os números, por sua aproximação com a realidade material e concreta, são capazes de demonstrar melhor as disparidades. De acordo com pesquisa mensal, divulgada pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), em um trabalho que vem sendo realizado desde 1955, o salário mínimo atual, capaz de atender, razoavelmente, uma família de quatro pessoas por 30 dias deveria, em valores atualizados, ser de R$ 6.527,67, ou seja 5,39 vezes o piso nacional que hoje é de R$ 1.212.
O que se tem aqui são as realidades discrepantes e indiscutíveis dos números. Vis a vis, por outro lado, e dentro do mesmo contexto de tempo e lugar, a aprovação, nesta quarta-feira (10) de um aumento de 18% nos salários, autoconcedido pelos ministros da mais Alta Corte do país e a todos servidores do Judiciário, demonstra, senão a indiferença pela realidade vivida pelos brasileiros neste momento, pelo menos descaso com as contas públicas sobrecarregadas com os custos crescentes da máquina do Estado.
Curioso e até trágico, nesse processo, é verificar que o aumento custará cerca de R$ 4,6 bilhões aos cofres públicos até 2024. Elevará o salário dos ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) de R$ 39 mil para R$ 46,3 mil, o que significa cerca de R$ 7 mil a mais, ou, exatamente, o que sugere hoje o Dieese para o compor salário mínimo real dos trabalhadores.
São dois mundos e duas realidades distintas convivendo sob o mesmo teto nesse lar desfeito que é o Brasil. Nessa questão, que se arrasta por décadas, não fosse a parte menos abonada, aquela que, obrigatoriamente, custeará os incrementos salariais que virão em cascatas torrenciais, tudo estaria resolvido. Fica aqui a pergunta secular: quosque tandem, Catilina, abutere patientia nostra?