JORGE FONTOURA - Professor e advogado
Em momento de notável retrocesso da consciência civilizada da humanidade, a não bastar o rescaldo trágico da pandemia inconclusa, o mundo vê-se aprofundar em crises internacionais desnecessárias e inoportunas. Assim, com a ordem mundial colapsada com a guerra eslava, mas não apenas eslava, e que se espalha e contamina, agosto começa impiedoso, de noticiário sempre a renovar nossa surpresa e espanto.
Longe de desejável apaziguamento que o tempo requer, a geopolítica inflamada parece agravar-se na órbita das superpotências, de membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas a ignorar seus deveres jurídicos com a solução pacífica de controvérsias, com a segurança coletiva e a manutenção da paz. Afinal, países constituídos como fiadores máximos da ordem mundial, superpotências atômicas detentoras de poder de vigiar, de punir e de vetar. Quem agora haverá de vigiar os vigilantes?
Na escalada de insensatez que nos assola, a crise provocada pela visita da presidente da Câmara de Deputados americana Nancy Pelosi a Taiwan (ou à ilha de Formosa, na designação original dos navegadores portugueses) parece conformar o estado da arte de política externa errática e inoportuna. Abstraídos aspectos de conjuntura interna dos contendores, as eleições legislativas de meio mandato nos Estados Unidos, a par da busca de onipotência estratégica por Xi Jinping, perto de ampliar seu mandato — inimigos externos são sempre os melhores cabos eleitorais — nada pode justificar o risco de jogar com fogo. Ou com bombas atômicas.
Thomas Friedman, exímio analista de política externa norte-americana, não usou meias palavras em relação à viagem da representante americana à ilha rebelde da China, a mínima, mas simbológica, Taiwan: "a visita é imprudente, perigosa e irresponsável. Nada de bom sairá disso". E mais: "Perseguir qualquer coisa que não seja uma abordagem equilibrada seria erro terrível, com consequências vastas e imprevisíveis".
Assim como há na Rússia a ideia-força de pertencimento das "ucrânias", literalmente, a significar fronteiras, tomadas como fronteiras estendidas, dogma do Kremlin, para a China, também questão interna, Taiwan é de Pequim. Embora não sejam convicções isentas de dúvidas históricas, políticas e jurídicas, não parece prodígio de inteligência entender não ser este o momento de desafios e de jogos de guerra de consequências imprevisíveis, em cotejo de ogivas com incalculáveis megatons, de arsenais nucleares infinitos, a poder destruir o planeta em átimo de segundos.
A questão fundamental parece em aberto: se na acomodação diplomática do pós-guerra fria foi possível um modus vivendi a evitar agendas insolúveis, estaria agora a história a acelerar-se rumo à intolerância fatal? Estaríamos no vórtice de terceira guerra mundial? Mesmo com o equilíbrio nuclear que impediria nova guerra, na certeza de não haver vencedores na destruição de tudo e de todos? Teria o senso inteligente da humanidade esquecido das calendas de agosto, dias 6 e 9, de Hiroshima e de Nagasaki, 1945? Poderia na era da insensatez a história estar a repetir-se ainda que como farsa? Como a última farsa?