Análise

Artigo: A porta de entrada para outras drogas

Desde 2016 o Brasil é o segundo maior consumidor de entorpecentes do mundo, ficando atrás somente dos EUA e de todos os países da União Europeia juntos, segundo Escritório das Nações Unidos Sobre Crime Global

AIALA COLARES - Geógrafo com doutorado em ciências do desenvolvimento socioambiental, professor da Uepa, onde coordena o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros

O desmatamento é a porta de entrada para outras drogas. Grandes desmatadores do agronegócio insustentável e o crime organizado — contrabando de madeira e de animais silvestres, pirataria de patentes, narcotráfico, trabalho e escravidão sexual, milícias e mineração ilegal — avançam Amazônia adentro, sem que nada os detenha. A cocaína tem acelerado essa destruição. Desde 2016 o Brasil é o segundo maior consumidor de entorpecentes do mundo, ficando atrás somente dos EUA e de todos os países da União Europeia juntos, segundo Escritório das Nações Unidos Sobre Crime Global. O país não é só rota, mas cliente VIP.

A Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu) denunciou que 39 comunidades foram invadidas por grupos criminosos nos últimos cinco anos, a maioria deles ligados a uma facção do Rio de Janeiro. A situação se agravou nos últimos meses, quando a quadrilha quis ampliar seu domínio na região. Ela entrou em conflito com outras organizações do Amazonas, Pará e São Paulo, que também vêm disputando o controle das rotas da cocaína na Amazônia. Os casos de violência e ameaças se intensificaram no segundo semestre do ano passado — com toques de recolher, invasões e assaltos constantes.

Quem vive em cidade grande — e aí não falo só de Rio de Janeiro e São Paulo, mas de Belém e Manaus também — conhece bem a história; o que vem acontecendo nas comunidades quilombolas amazônicas não é muito diferente. A Região Norte atrai o crime organizado, pois o baixo índice de desenvolvimento humano dado a essas populações fez delas presas fáceis para se tornarem engrenagens da vasta rede que se constrói para as operações ilícitas. É o ecossistema da criminalidade.

Com a variedade de atividades, fica mais fácil ocultar a origem do dinheiro. Tráfico e garimpo ilegal construíram pistas de pouso clandestinas — há cerca de 2 mil no Pará. Mas os criminosos também usam as legalizadas, localizadas em propriedades particulares. Olha só o ciclo se fechando: o desmatador abre caminho para a chegada e a saída do traficante. Pelo fato de fazer fronteira com países que cultivam a tradição do plantio da folha de coca (Bolívia, Colômbia e Peru), a região é uma das portas de saída da cocaína para a Europa e a África, além de abastecer o mercado brasileiro, que consome quase 3 milhões de toneladas por ano. A contrapartida (sic) regional: em 2020, os nove estados da Amazônia Legal apresentaram taxas de mortalidade mais altas do que a média nacional, que foi de 23,9 mortes a cada 100 mil habitantes. Amapá (41,7), Acre (32,9) e Pará (32,5) lideram essa listra trágica, e a média na região (29,6) também é maior que a total.

Não se pode afirmar se aconteceu por uma conjunção de interesses ou uma grande coincidência, mas é fato que a política ambiental adotada no governo atual criou as condições perfeitas para que esse esquema proliferasse. O afrouxamento da legislação ambiental, o enfraquecimento ou aparelhamento de órgãos de fiscalização ambiental e de legalização fundiária — Ibama, Incra, Funai, Polícia Federal, ICMBio, Fundação Palmares etc. — serviram para traçar um loteamento para o crime organizado na maior floresta tropical do planeta. O seu rastro de destruição e violência fica cada vez mais visível. Os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips sinalizaram para o mundo. Vejam só o caminho que ele faz só na Amazônia: sai lá do Acre, na fronteira com Peru e Colômbia e prejudica quilombos no nordeste do Pará, para as bandas do mar e do Maranhão.

Este mês começa o primeiro Censo Quilombola do IBGE. Aproveitamos a ocasião para realizar o ato Aquilombar, em 10 de agosto, em Brasília, para denunciar os desmontes de políticas públicas, a violência contra a população quilombola e aumentar o volume de nossa voz no debate político do país. Quilombolas são fundamentais para a preservação de meio ambiente, cultura e medicina popular. Todos nós deveríamos aprender com os indígenas lições de resistência; em uma palavra, temos algo vital a oferecer para o Brasil de hoje: tolerância. Quilombos não são refúgios, mas locais de acolhimento. Este país precisa amparar seu cidadão, acalentá-lo, não o tratar como inimigo.

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