LÍGIA IVANA FLORES - Microempresária
Ser negro, profissional e respeitado no Rio Grande do Sul é caminhar sobre pedregulhos todos os dias. Temos que ser os melhores em tudo o que fazemos. Tive a experiência logo em meu primeiro cargo comercial de ser a melhor estoquista, vendedora e esperar com muita paciência para ser promovida a gerente. O que só aconteceu após 10 anos e depois de uma campanha das clientes da loja, na qual trabalhei mais 20 anos, para que fosse reconhecida minha capacidade e qualidade profissional, para além dos padrões de beleza que a sociedade exige.
Antes da promoção, eu era chamada pela gerente, que não era negra, para resolver os problemas que surgiam no dia. Se dava certo, a moça loira e de olhos azuis recebia os créditos; se desse errado, eu que ficava com a responsabilidade. Foi o apoio das clientes mais assíduas que conversavam com os proprietários sobre a excelência do meu trabalho, que ajudou na conquista da promoção.
Nesse momento, a insegurança dos proprietários sobre ter uma gerente negra numa loja classe A, num dos shoppings mais tradicionais de Porto Alegre, foi vencida pelos meus resultados. Segui nesse trabalho por mais 23 anos, até me aposentar. No entanto, para conquistar e manter essa posição, passei pelo que muitas pessoas negras passam. Tive que ser, durante todo esse tempo, a mais pontual, eficiente, atualizada em todos os segmentos: moda, política e cultura, acompanhar notícias para poder conversar sobre tudo.
Nesse local em que fui gerente, fornecedores entravam na loja e passavam direto pela gerente negra para tratar com a moça branca que servia cafezinho. Alguns nem escondiam a surpresa ao serem informados que eu era a responsável. Colegas também me rejeitaram, na própria empresa e isso me fez trabalhar com mais vontade e mostrava que eu merecia a promoção. Trago esses relatos pois sei que muitas pessoas negras vivenciam, ainda nos dias de hoje, situações semelhantes. Embora alguns ousem afirmar que o racismo não existe ou que melhorou muito, há situações cotidianas que mostram o contrário e é importante ressaltar que não é pessoal, é o racismo mesmo.
Acredito que consegui vencer os obstáculos que a cor da minha pele poderia sofrer, com muita paciência e sabedoria. Foram muitos anos árduos, mas sempre com um sorriso. Consegui provar para muita gente que negros têm muita capacidade, podem ser educados e exercer qualquer cargo no mercado de trabalho. Ao me aposentar, resolvi que não deixaria de me dedicar ao trabalho. Por ser muito dinâmica e acostumada com uma rotina diária, tinha necessidade de seguir sendo produtiva, sentia-me em condições para isso. Assim, abri uma microempresa num bairro de classe média de Porto Alegre e continuo a sofrer episódios de racismo, inclusive dentro do meu próprio estabelecimento.
Ressalto que esses relatos são pessoais, mas não acontecem apenas comigo, ou apenas no Rio Grande do Sul e que considero a partilha pedagógica de um alerta para alguns comportamentos. Já aconteceu, por exemplo, de pessoas entrarem na minha loja, se dirigirem a mim e pedirem para falar com o proprietário. Quando digo que sou eu, deixam de me chamar de tu e eu passo a ser senhora. Geralmente, esses são os que querem vender algo. Acontece também de ter alguma cliente branca no local, aí passam por mim e vão direto nela, me ignoram totalmente. Seria cômico, se não fosse puro racismo.
Acredito que as pessoas pensam que, principalmente, mulheres negras não podem ser organizadas e ter uma pequena empresa, mas só ser empregadas de alguém, funcionárias, principalmente na área de limpeza e cozinha. Somos considerados inferiores, ignorantes e analfabetos nesse estado do Brasil em que alguns pensam que são europeus.
Muitas vezes, também sinto que querem nos "ensinar" o que é melhor. Seja na escolha do nosso time de futebol, partido político, em quem votar ou não, até o bairro onde devemos morar e dos quais devemos manter distância. Ser negro no Rio Grande do Sul é pular barreiras diariamente. Em algumas situações, temos que fingir que não vemos, não escutamos e não entendemos.
Mas apenas quem sofre com olhares desconfiados sabe o que acontece. Não podemos esquecer que há pouco mais de 100 anos, ainda havia pessoas escravizadas no Brasil. E, ainda hoje, há descendentes de "senhores"; e "senhoras" que pensam como seus bisavós. Mas não podemos nos calar. Temos que continuar mostrando que podemos, cada vez mais, conquistar nossos espaços até que haja real igualdade.