EDITORIAL

Visão do Correio: A 'cupinização' de recursos naturais

Uma carta de pesquisadores brasileiros ligados a importantes organizações ambientais em níveis nacional e internacional, publicada na revista científica BioScience, chama a atenção para o que vem sendo classificado como a "cupinização" do Pantanal Matogrossense, e serve de alerta não apenas para a ameaça que paira sobre o ecossistema único, de importância planetária, mas sobre todos os biomas do país. No texto, os autores procuram demonstrar, já desde o título, como "decisões sutis e 'legais' estão ameaçando uma das maiores zonas úmidas do mundo".

Os pesquisadores Fernando Tortato, Walfrido Moraes Tomas, Rafael Morais Chiaravalloti e Ronaldo Morato se referem ao acúmulo de decisões, licenciamentos e autorizações para empreendimentos aparentemente menores que, somados, têm potencial de causar consequências profundas dos pontos de vista ecológico, geográfico e social, cujo alcance em larga escala é difícil de estimar. Destacam que são permissões que consideram apenas os impactos locais de certas intervenções, que geram benefícios localizados e privados, enquanto os custos, somados aos impactos de várias outras estruturas consideradas de menor porte, serão suportados coletivamente.

O termo "cupinização" vem da ideia de que a soma de empreendimentos menores, liberados sem análise de impactos globais, se assemelharia aos efeitos de um ataque de cupins sobre um móvel ou um pedaço de madeira. Individualmente os "buracos" parecem pequenos e localizados, mas, sem que se perceba superficialmente o dano, as galerias abertas são tantas e danificam de tal maneira a estrutura, que ela pode chegar ao colapso — risco que, dizem os autores, está rondando o bioma Pantanal. Não é só ele.

A metáfora sobre a ação de cupins se inspirou em declaração da ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, ao analisar ações da chamada pauta verde, que questiona decisões ou supostas omissões do governo federal sobre licenciamento ambiental, fundos de proteção e desmatamento da Amazônia. Ela se referiu à "cupinização silenciosa e invisível" de órgãos de fiscalização. "É a destruição constitucional pela cupinização. As instituições são destruídas por dentro, como (resultado da ação do) cupim", declarou.

Difícil não associar a avaliação da magistrada à polêmica declaração do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, sobre a necessidade que via de "passar a boiada", "simplificando as normas" ambientais e de outros setores, enquanto a imprensa estava ocupada em noticiar a tragédia da pandemia no país. A fala faz lembrar o ditado: "Onde passa um boi, passa uma boiada". De cupins a bovinos, muda-se a criatura, mas a metáfora dos pequenos estragos que têm potencial de se transformar em grandes desastres segue válida - e atualíssima, ainda que Salles tenha perdido o emprego após se meter em outras polêmicas.

Em que pese a injustiça da comparação que associa os danos de ações humanas aos cupins — de reconhecida importância ecológica, por atuarem na decomposição de matéria orgânica e reciclagem de nutrientes —, os alertas, tanto dos cientistas quanto da ministra do STF, servem para todos os biomas do país. Para além dos danos sistêmicos do conjunto de autorizações para empreendimentos localizados, setores da economia que vão do imobiliário ao agronegócio, passando pela mineração, parecem ter aprendido, como denunciam ambientalistas, formas de driblar exigências e contrapartidas pesadas que são feitas diante de grandes empreendimentos.

Dentro desse raciocínio, a solução "legal" seria, em muitos casos, fatiá-los, licenciando-os sob a forma de negócios de menor porte, que depois serão expandidos com outras licenças menores, até que atinjam o tamanho — e o impacto — para o qual foram projetados desde o início. Como advertem os ambientalistas em relação ao Pantanal, não são ações ilegais. Apenas artifícios que se aproveitam de brechas da lei para gerar benefícios privados em detrimento de um patrimônio coletivo — seja ele hídrico, geológico, da Amazônia, do cerrado, do Pantanal... Parece clara — e urgente — a necessidade de rever normas para tampar brechas como essas. Antes que elas se tornem tantas, e usadas tantas vezes que corroam irremediavelmente o que nos resta de natureza.

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