CRISTOVAM BUARQUE - Professor emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o Futuro da Educação
A leitura das 1.584 páginas dos três volumes do livro Escravidão, de Laurentino Gomes, passa a sensação das 1.575 páginas (na edição Nova Aguilar) do Guerra e paz, de Tolstói: um gostinho de quero mais. O leitor fica instigado a conhecer mais do tema e a continuar o prazer de ler. No caso de Guerra e paz, o leitor quer conhecer a continuação da história do povo russo. Com o Escravidão, queremos saber sobre a continuação desse sistema, mesmo depois da abolição. O próprio Laurentino Gomes conclui o livro com o capítulo "O dia seguinte", ao Treze de Maio, mostrando a abolição incompleta, 130 anos depois. Ele indica a desigualdade nas condições de vida entre negros e brancos e afirma que "o racismo se mantém como um traço característico da sociedade brasileira".
Fica faltando a história da escravidão no pós-abolição, como se os três volumes não bastassem para contar a saga do escravismo não terminado, cuja maldade tem o porte da barbárie do holocausto, do apartheid, persistindo sob a forma da desigualdade crescente, e durou muito mais e atingiu mais pessoas. A Lei Áurea foi duplamente escamoteada: não ofereceu educação, que não contemplava, e pagou indenização, que prometeu não fazer.
Uma escravidão moderna continuou por 100 anos sob a forma da negação de escola para os descendentes sociais dos escravos. Até o século 21, quando entram em vigor a lei do Piso Nacional Salarial do Professor e a obrigatoriedade de vaga em escola pública dos quatro aos 17 anos, mas mantém o sistema de educação dividido entre "escolas senzala" e "escolas casa grande", conforme a origem social do aluno. Essa desigualdade é uma trincheira do escravismo.
Rui Barbosa decidiu queimar os arquivos da escravidão para impedir que os escravistas e seus descendentes cobrassem e recebessem indenização por causa da desapropriação do direito adquirido de possuir seres humanos que tinham sido comprados. Mas, desde então, cada orçamento público brasileiro é uma transferência de renda para investir em benefício dos descendentes sociais dos donos dos escravos, tirando recursos de projetos sociais que beneficiariam os pobres, descendentes sociais dos escravos, na sua maioria descendentes também raciais.
No ano 134° da Abolição, um único item, secreto (de R$ 20 bilhões) no orçamento, e sem benefícios claros para a vida dos pobres, permite indenizar aos descendentes atuais de seus donos, com R$ 25 mil para cada um dos 800 mil escravos cativos em 1888. Soma-se a isso os subsídios e investimentos para a parcela rica: ao longo de três décadas percebe-se que a indenização continua sendo paga, em montantes muito maiores do que se imaginava à época. Por toda nossa história, a República tira dinheiro que deveria ser investido na educação, saúde, moradia, emprego dos descendentes dos escravos e os utiliza para financiar conforto e patrimônio de classes privilegiadas.
Tolstói não escreveu uma complementação para Guerra e paz, mas esperamos o quarto volume do livro Escravidão: os anos seguintes à Abolição. Enquanto esse novo volume não vem, cada casa brasileira deveria ter os três primeiros para contar a saga escravocrata, que durou quase todo o tempo de nossa história. Nos fazer perceber que quase todos os problemas que atravessamos — uma barreira ao progresso e um lamaçal na política — decorrem daqueles 400 anos que Laurentino nos descreve desde o primeiro leilão na cidade de Lagos, em Portugal. Cada criança deveria aprender a ler conhecendo essa chaga sobre a qual o Brasil foi construído. Esta seria uma maneira de ensinar, pelas informações, passar gosto por ler, graças ao belo texto do livro, e despertar indignação com as maldades sociais que nossa elite política e econômica pratica há séculos. Além disso, usar o livro como um despertador moral e político para querermos fazer o Brasil melhor e mais belo, completando a Abolição.
A alma de um povo é construída por seus escritores, artistas e poetas quando eles são capazes de reunir rigor no conhecimento histórico com genialidade para escrever bem. Ainda mais quando suas informações e textos passam empatia pelo lado injustiçado da população. Escravidão é para ser lido e relido, porque está escrito com a qualificação de um investigador e a maestria de um escritor: consegue o rigor da análise, com a beleza do texto, sem esconder o horror do tema. Com essa saga, o Brasil tem seu Guerra e paz, descrevendo uma realidade que parece ficção, tanto quanto Tolstói escreveu uma ficção que parece realidade.
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