"Não é a política, é você, que acredita nesses jogos virtuais, enquanto deixa de prestar atenção em quem vota", esbravejou, ou melhor berrou, o realista e mal-humorado Miguelão, externando toda a sua impaciência com as tolices que lhe catucavam os ouvidos, vindas de alguém desprovido de inteligência e bom senso. De que adiantaria ficar ali ouvindo todo esse converseiro inútil e lamuriento, vindo de gente iludida e arrependida com as artimanhas da politicagem nacional?
"Não tenho tempo a perder com gente perdida. Boa noite", disse fechando a porta da vendinha na cara do freguês e vizinho, espantado com tanta "sinceritude".
"Melhor receber logo uma resposta grossa e curta, mas verdadeira, do que ser enganado ao longo de quatro anos, com docilidades e fantasias", completou Murici, seu companheiro de copo e de observações do mundo.
É, de fato, Romero tinha sido, mais um vez, tapeado em suas esperanças diante das urnas, pois nada do que lhe prometeram havia se cumprido. Na verdade, o mundo em volta parecia ainda mais difícil de ser vencido. Havia a carestia dos alimentos, o desemprego em alta e, por toda a parte, a sensação que se tinha é de que as cidades pareciam ter sido invadidas por hordas de mendigos e pedintes. O pior é que, para o bem da verdade, Romero já nem conseguia lembrar em quem havia votado quatro anos atrás. Nem para vereador, senador, deputado ou presidente. Nunca se lembrava.
Distraído e desinformado, como sempre, jamais prestava muita atenção nos candidatos que votava. Não tinha tempo para essas tarefas. Afinal, todos pareciam sempre iguais e vazios. Votava por votar. Talvez por receio de multas, ou pela necessidade burocrática de possuir o recibo de comparecimento ao local de votação. O governo obriga e o patrão sempre pede o comprovante de votação. Melhor não arriscar.
A questão é que, para ele, a desilusão com os descaminhos da política e com o excesso de escândalos, mostrados todas as noites nos telejornais, vinham numa altura de sua vida em que lhe faltavam forças para mudar de opinião. "Já não posso dar prosseguimento nem mesmo aos meus projetos, que dirá aos projetos para um país melhor", pensava, em busca de uma desculpa que o ajudasse a fazer as pazes com um mundo que desmoronava ao seu redor.
Miguelão, para quem o anarquismo era a único sistema e resposta racional capaz de acabar, de vez, com os maus políticos que infestam a vida brasileira, não tinha pachorra para debater assuntos da política nacional. Muito menos para dar conselhos a quem quer que seja. Não vislumbrava valia alguma nessas discussões sobre a performance de personagens medíocres e calhordas.
Para ele, perder tempo discutindo sobre gente sem valor moral era valorizar figuras que não mereciam sequer um dedo de prosa ou de reflexão. Talvez, por isso, nunca tenha comparecido diante das urnas. Romero não se conformava de ter sido trapaceado todos esses anos, mesmo cumprindo, religiosamente, seu papel de cidadão, indo votar. Ele também não podia aceitar o fato de que era ele responsável direto e a causa de sua desilusão. Em sua cabeça a voz troante de Miguelão não parava de ecoar: "Não é a política, idiota. É você!"
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