ditadura militar

Artigo: Retratos de um período

Correio Braziliense
postado em 02/08/2022 06:00
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

ANDRÉ GUSTAVO STUMPF - Jornalista (andregustavo10@terra.com.br)

Era um tremendo foca, como os jornalistas se referem ao novato na profissão, quando fui encarregado de fazer a cobertura da solenidade comemorativa da diplomação do presidente da República, recém-escolhido pelo Congresso, por via indireta, general Artur da Costa e Silva. Cheguei cedo ao Hotel Nacional, hoje fechado, mas na época constituía o local mais elegante de Brasília. Corria o ano de 1967, o governo do marechal Castello Branco tinha promovido uma feroz recessão econômica e uma brava repressão política, repleta de cassações. Havia uma vaga esperança de que o ambiente político melhorasse com a posse de outro militar na presidência da República.

Procurei o lugar da imprensa. Não havia. Fui colocado na fila de convidados. Resignado, fiquei ali até ser formalmente apresentado ao presidente e sua mulher, donas Yolanda, que recebiam os convidados na porta. O presidente, em voz alta, disse para ser ouvido: "Vejam a verdadeira juventude do país". Era eu. Expliquei baixinho que estava ali como repórter, mas não fui ouvido. Entrei e passei a conversar com as pessoas que estavam no luxuoso coquetel no salão vermelho. Meu chefe, o saudoso Alfredo Obliziner, me encarregou de anotar os nomes de todos ou quase todos os convidados.

Papel na mão, atenção máxima. Cerca de 40 ou 50 minutos depois do começo do coquetel, iniciado às 19h horas, saíram os integrantes do governo Castello Branco, que se despediam. Ficaram Costa e Silva, seus ministros e convidados. A festa seguiu em frente, uísque rolando solto, generoso, bons vinhos, champanhe e salgadinhos deliciosos. O presidente eleito estava desfrutando do momento. Rindo muito. Ele gostava do uísque. Acontece que lá pelas nove da noite os convidados começaram a sair. Segundo o protocolo, ninguém pode sair antes do presidente. Mas as pessoas fugiam por trás das cortinas vermelhas do salão.

O presidente Costa e Silva não percebia por que estava se deliciando com os elogios, com o uísque e com as meninas que pululavam à sua volta. O salão começou a ficar perigosamente vazio. Os diplomatas são agilíssimos. Em festa de presidente, o salão não pode ficar com pouca gente. Alguém teve a ideia de chamar as meninas que caçavam clientes na porta do Hotel Nacional para fazer número no coquetel. Encheram de novo o salão com a promessa de boa bebida e melhor comida, tudo de graça. Estiquei minha permanência no local até depois das 23h, o que era um exagero para um coquetel normal, muito mais para uma festa formalíssima de diplomação do presidente da República. Foi um retrato claro e antecipado de que aquele governo não poderia dar certo.

Seu Artur, como ele gostava de ser chamado, era, no dizer de seus colegas de farda, um sargentão grosseiro, pouco dado à leitura, com baixo nível intelectual, amante das corridas de cavalo e de um pôquer com os amigos. Funcionava como porta-voz dos grupos militares mais duros inclinados a fechar o regime e determinados a evitar qualquer passo no sentido de arejar o ambiente político. Ele, que prometeu nos primeiros discursos restaurar o regime democrático no país, terminou por assinar o Ato Institucional número 5, o mais duro de todos, que abriu as portas para o estado policial e só seria revogado no primeiro dia de 1979.

A disputa entre facções do Exército percorre toda a história do Brasil moderno. Não há novidades nesse tema. Castello Branco foi obrigado a engolir a candidatura de Costa e Silva à sua sucessão. Tempos depois, os derrotados nas primeiras horas do movimento militar conseguiram sua revanche. Emplacaram o general Ernesto Geisel na sucessão de Garrastazu Médici. Apareceu a política de abertura lenta e gradual, de que resultou a anistia e, posteriormente, a convocação da Assembleia Nacional Constituinte.

Dos 21 anos que os militares ficaram no poder, entre 1964 e 1985, resultou um saldo de cerca de 10 mil exilados, 7.387 acusações formalizadas por subversão, 4.682 cassados e cerca de 300 mortos e desaparecidos. Os remanescentes daquela turma que perdeu o poder na ocasião da sucessão do presidente Geisel procuraram alternativas para sobreviver. Uns foram para proteção de jogos ilícitos, de milícias ou de tráfico de drogas.

Dentro do Exército, eles encontraram um caminho na candidatura de Jair Bolsonaro, o capitão que foi expulso do Exército por causa das críticas aos baixos salários. Ele se encontrou no ambiente da política. Foi eleito diversas vezes. Mas agora precisa desencavar comunistas para justificar suas críticas às urnas eletrônicas que foram utilizadas em todas as suas eleições e nas de seus filhos. Sem queixas.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.