O futebol como arma

Não é de hoje que o futebol, de arte do povo e para o povo, foi transformado, por suas potencialidades, em arma de propaganda. Nas mãos dos marqueteiros, em que tudo é costurado com o tecido das ilusões da propaganda, o futebol virou garoto propaganda de governos, principalmente daqueles, cujo o horizonte intelectual não vai além da esquina mais próxima.

Surpreende que, depois de mais de 20 séculos a nos separar do grande Império Romano, o pani et circenses, a fórmula populista ainda faça grande efeito sobre as massas. Não causa espanto que, para esse objetivo, nove, entre 10 demagogos tenham se empenhado em destruir quaisquer projetos de educação popular, por meio de escolas públicas de qualidade. A ignorância e a cegueira mental são irmãs siamesas.

É preciso, pois, fazer dos programas de governo um projeto nacional de destruição paulatina da educação pública. Nada contra o futebol. Tudo a favor do ensino. Conhecerás um pretendente a ditador do momento ao seguinte sinal: todos eles utilizam de eventos populares, não para o regozijo de sua gente, como quer parecer, mas, tão somente, para alavancar sua imagem diante do povo, visando angariar apoio às suas pretensões políticas de cunho populista. Tal é a característica comum a todos eles, sem exceção. O que muda é apenas o tipo de evento popular a ser explorado como marketing político. Nesse caso, pouco importa o tipo de espetáculo. O importante é que reúna o maior número de adeptos. Pode ser ligado ao folclore, às tradições ou ao esporte.

No país do futebol, a utilização desse esporte, como muleta oportunista dos políticos, é fato histórico antigo, manjado e pode ser conferido, praticamente, desde que surgiram os clubes devotados ao ludopédio. Só existe um porém nessa estratégia marota: para que a fórmula funcione é necessário, antes de tudo, que o time escolhido tenha grande e apaixonada torcida, capaz de empolgar e incendiar multidões, tornando-as presas fáceis.

Quando o marketing político mira a Seleção do país, onde estão representantes de todos os times e jogadores mais destacados, transformando-os em garotos propagandas do governo, essa mistura entre oportunismo populista de cunho nacionalista com a paixão dos torcedores, rende resultados à medida que esse escrete devolve a aposta em forma de gols e de vitórias incontestes.

Em situações assim, o chefe de governo comparece aos estádios e, da tribuna de honra, faz questão de ser visto e aplaudido. Mas, para esse ato, é preciso ter segurança de que será aplaudido porque neste mesmo país do futebol não é raro os espectadores vaiarem até o minuto de silêncio. Numa situação em que o Estado democrático de direito usa o seu tempo para cuidar, com denodo, de questões da mais alta relevância para a nação, não resta espaço e vontade para que o governo interfira em problemas menores relativos ao futebol, já que essa é uma atividade mantida por organizações e empresas privadas e com interesses próprios e diversos.

Também no Brasil e por diversas vezes, essa intromissão indevida do governo no mundo do futebol, quase sempre, tem rendido, ao lado de alguns minutos de popularidade ao chefe do Executivo, elevados custos para os pagadores de impostos que acabam arcando com a armação desse circo. Caso exemplar pode ser conferido durante a preparação para a Copa Mundo de 2014, com a construção de enormes e caríssimas arenas de futebol, destinadas à realização do campeonato. Hoje, a grande maioria dos estádios foram transformados em verdadeiros elefantes brancos, sem utilidade alguma, depois de terem sido erguido à base de muita corrupção e sobrepreço.

Além desses fantasmas de concreto, as seguidas humilhações impostas pelos diretores da Fifa ao governo, os escândalos nessas construções e os posteriores que redundaram no banimento perpétuo desses dirigentes do futebol, as prisões dos chefões da CBF, as vaias retumbantes no estádio, durante a abertura dos jogos, e a derrota, fragorosa da seleção para Alemanha por nada menos que 7 x 1.

Não foi pouco. Toda essa amarga experiência deveria ser utilizada como um aprendizado para que o governo jamais voltasse a misturar os assuntos de Estado, com os problemas de estádios. Mas não foi o que aconteceu. Os países, onde seriam realizados o torneio, cuidaram logo de empurrar esse abacaxi para o Brasil. O que se viu, pelo menos até agora, foi o ensaio de revolta dos próprios jogadores e técnicos, possivelmente calados pelo reforço em dinheiro dos prêmios, bem como os escândalos de assédio sexual do presidente da CBF e seu posterior afastamento da instituição. Também tem aumentado o repúdio dos brasileiros, médicos e enfermeiros e de todos os que perderam amigos e familiares nessa pandemia. Falta agora, para completar esse quadro patético, a vaia nos estádios , e a derrota da seleção nessa copa do Catar, para, mais uma vez, cair a ficha. Mesmo em caso de vitória essa é uma situação que em nada vai beneficiar os brasileiros, preocupados em sobreviver o pós pandemia e à crise econômica e social que se seguiu.

Passadas as eleições, as atenções dos brasileiros, — se o pós-pleito for digerido com tranquilidade — estarão ligados nos jogos da copa. Mais uma vez a mídia fará de tudo para dar grande visibilidade ao evento. Nesse ponto, tudo indica que as eleições estarão na estação de embarque, rumo a cidade distante do esquecimento. Para qualquer governo que chegar, a vitória do Brasil nos jogos do Catar representará um grande capital para o próximo governo, que tudo fará para atrair essa vitória e seus efeitos deletérios e efêmeros para sua gestão, comparando o sucesso dos jogadores ao governo, tudo numa grande encenação como era há mais de dois mil anos atrás.