Olho d'Água
O cenário estava bem composto. Uma galinha ciscando num terreiro — há quanto tempo não via uma ao vivo. Inevitável lembrar do frango à passarinho dos botecos de Brasília; um cavalo trotando no meio da pista — dava para ouvir o toc, toc, toc dos cascos. Verdadeira educação auditiva; um automóvel rodando bem devagarinho no meio da pista — não cometi a indelicadeza de buzinar pedindo passagem. Brasília me instruiu para isso: casas de arquitetura simples — portas e janelas abertas. Um deleite estético contrapondo à geometria de Niemeyer; a rua ao lado da igreja com pedras portuguesas — se fora a vila estava calma, imagino o silêncio sepulcral do templo; o cemitério próximo à igreja — uma verdadeira paisagem morta; as barracas com lonas — era sábado dia de feira. Um vilarejo ideal para saborear a ociosidade. Foi isso que fiz no último fim de semana. Entre Brasília e Goiânia, a pouco mais de uma hora de viagem, está Olhos d'Água convidando para quem quer se desligar da tomada. Desprezar as delícias e as loucuras da conectividade da internet. O celular, a célula vitae da modernidade? Escanteei no monturo cibernético. Lá, em Olhos d'Água, se desconhece verdadeiramente o tempo passar. Muito mais se você, com amigos e amigas, vai a um boteco despojado sorver uma cervejinha, regada a um bate-papo sobre as coisas inúteis da vida. Acredito que eu estava embebido de lirismo. De quebra, ouvindo som ao vivo da fina flor da música popular brasileira. Era a música de Lenine que tocava fundo naquele momento congelado e de fruição, que dizia ao som de um violão tocante: "Enquanto o tempo acelera e pede pressa, eu me recuso, faço hora, vou na valsa. A vida é tão rara". Saí de lá quando o Sol estava se recolhendo. Olhos d'Àgua ia jantar.
Eduardo Pereira,
Jardim Botânico
Paixonites políticas
Em termos de normalidade, questões jurídicas não deveriam suscitar paixões políticas. Mas, como tudo no Brasil passou a se mover pelo combustível da exaltação, cá estamos mais uma vez em clima de clássico de futebol diante da acirrada corrida eleitoral à Presidência da República. De um lado, a esquerda invocando a Justiça, nas supostas ilegalidades das ações do presidente Jair Bolsonaro. Do outro lado, a direita defendendo-se, contraditando. Quanto à gravidade do homicídio no Paraná, não restam dúvidas, houve a motivação política. Por mais corajoso, moralizador e didático que venha sendo o presidente, em nenhum momento, ele não compactua e tampouco incita os bolsonaristas à violência que venha comprometer o processo eleitoral. O próprio espírito democrático de direito, justifica a adoção de harmonia no curso do pleito, sempre respeitando o contraditório. É imprescindível que se ande mais devagar com o andor das reações exaltadas a fim de encontrar um ponto de equilíbrio na análise do que já se sabe e do que ainda, segundo consta, vem por aí. Quanto mais grave se tornarem as celeumas políticas, mais necessário será traçar uma linha divisória entre o que é fato e o que é ficção motivada por paixonites político-ideológicas. O embate das forças políticas, seja da esquerda ou da direita, fora do eixo racional e ético, dificulta o entendimento do quadro eleitoral, por parte do eleitor. Trata-se agora, de apurar em ambos lados partidários e examinar com acuidade e transparência, de maneira mais desapaixonada possível o que realmente há de ilegalidade ou apenas controvérsias nas quais muitos divergem. Se não for assim, há o risco de que se incorra no pecado da parcialidade que pode pôr os candidatos ao Palácio do Planalto na berlinda desprovidos da aura de herói.
Renato Mendes Prestes,
Águas Claras
Titanic brasileiro
Os estádios de futebol estão cheios de público. As festas, repletas de baladeiros. Bares e restaurantes voltam a lotar. Casamentos, aniversários, aglomerações diversas, idem. Voltam as viagens e atividades turísticas. Quem pode, gasta dinheiro como nunca. Surgem os novos milionários, seja nas músicas de multidões, no futebol ou em outras atividades inusitadas, como os influencers digitais. As demandas reprimidas pela covid, e outras dificuldades, retornam, e essas não assustam mais. Enquanto isso, o planeta estertora pela agressão ambiental continuada e desmedida do elemento humano, as guerras se alastram e as despesas militares são extraordinariamente exacerbadas. Os crimes, as doenças e a loucura grassam. Faltam alimentos para uma parcela cada vez maior da população que não tem o que comer dignamente, agora usando os dejetos dos mais abastados. Os governos, especialmente o brasileiro, jogam recursos pelo ralo dos desmandos e da corrupção, enquanto os mesmos políticos de sempre, ladrões, loucos e desvairados, metem a mão no erário para as suas eternas campanhas políticas. Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, a Europa vivia em festa. No naufrágio do Titanic, enquanto o navio adernava, perigosamente, a orquestra tocava e as pessoas dançavam e cantavam, insensíveis à tragédia. Assim vive a humanidade.
Humberto Pellizzaro,
Asa Norte