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Artigo: Ubaldo vive

ORLANDO THOMÉ CORDEIRO - Consultor em estratégia

O grande cartunista Henfil, se vivo fosse, estaria com 78 anos. Infelizmente, nos deixou ainda muito jovem, no auge da carreira. Criou diversos personagens — Bode Orelana, Graúna, Fradinhos, todos eles ícones do universo de quadrinistas brasileiros. Apesar da rígida censura, seus quadrinhos eram marcados por críticas irônicas, inteligentes e ácidas à ditadura.

Como a história nos mostra, o ditador Ernesto Geisel tomou posse em 1974 e marcou seu governo pela ideia de promover uma abertura política "lenta, gradual e segura" como caminho para os militares deixarem o poder. Esse movimento tático gerou reações distintas. Enquanto figuras importantes da política e da intelectualidade acreditavam na proposta, outras tantas demonstravam enorme desconfiança quanto às reais intenções do regime.

É nesse cenário que, em 1975, Henfil cria Ubaldo, o Paranoico. Com cabelos grandes e bigode, era o estereótipo da juventude militante da época. Mas sua principal característica era o permanente receio de que a tal abertura não fosse para valer. Uma das tiras mais engraçadas que tive a oportunidade de rever recentemente apresentava Ubaldo saltando rapidamente da poltrona ao ouvir a vinheta anunciando uma edição extraordinária do Jornal Nacional.

Passados 47 anos, dos quais os últimos 37 representam o maior período contínuo de democracia política em nosso país, surgem especulações de que possamos estar à beira de novo golpe. As razões para esse temor decorrem das constantes e sucessivas declarações do presidente com ameaças às instituições republicanas. Apesar do respeito que tenho por diversos analistas e políticos defensores dessa tese, creio que ela não tem respaldo na realidade política brasileira.

É indiscutível que o comportamento presidencial, desde sua posse em janeiro de 2019, tem como marca registrada os famosos morde e assopra e se colar, colou. O exemplo mais marcante dessa trajetória havia sido o episódio em 2021 quando ele afirmou que não cumpriria quaisquer decisões do ministro Alexandre de Moraes para, dias depois, recuar e propor um armistício mediado por Temer.

Porém, esta semana ele se superou. Em uma reunião com embaixadores, convocada por ele, voltou a desancar as urnas eletrônicas, repetindo as mesmas mentiras de sempre. O mais grave nesse episódio é ver um chefe de Estado, em pleno exercício do cargo, agir para desmoralizar o próprio país perante o mundo.

De imediato, a reação dos embaixadores foi de absoluta perplexidade. E, no dia seguinte, alguns governos nacionais fizeram questão de declarar oficialmente que o Brasil tem um histórico de eleições limpas e seguras. O destaque foi a nota emitida pelo governo dos EUA. No plano interno, representantes de outros poderes e da sociedade civil saíram a campo condenando de forma enfática o comportamento presidencial. O presidente do TSE fez questão de rebater enfaticamente todas as fake news presidenciais. Os únicos a se manterem em vergonhoso silêncio foram Arthur Lira e Augusto Aras. Este último está sendo pressionado pelos procuradores dos Direitos do Cidadão nos 26 Estados e no Distrito Federal para que abra um processo investigativo.

Outra informação relevante foi que os comandantes das FFAA se esquivaram de comparecer à reunião, revelando um sinal de lucidez que, diga-se de passagem, tem faltado a eles e ao ministro da Defesa nos últimos meses.

O comando da campanha pela reeleição considerou que o episódio foi um verdadeiro tiro no pé. Inclusive fizeram circular na mídia notas acusando os três responsáveis pela ideia, apelidados de aloprados: o general Augusto Heleno, famoso por cantarolar "se gritar pega Centrão, não fica um meu irmão", o assessor especial para Assuntos Internacionais, Filipe G. Martins, conhecido por fazer um gesto supremacista branco em uma solenidade no Planalto; e o ministro-chefe da Secretaria de Governo, Célio Faria Jr.

Por tudo isso, fico surpreso em ver importantes analistas políticos avaliarem que a tal reunião foi mais um passo em direção ao golpe. Especulam que, se ele perder a eleição, poderemos ver cenas semelhantes às da invasão do Capitólio nos EUA. Ora, ao insistirem nessa tese, acabam por fazer exatamente o jogo do presidente. Aliás, o maior risco de golpe reside na possibilidade do incumbente conquistar mais um mandato.

Temos que manter nossa firme defesa da democracia, deixando claro que não permitiremos nenhum arroubo golpista. Vamos nos mirar nos exemplos passados de Ulysses e Tancredo. Ubaldo deve viver apenas em nossa memória afetiva.

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