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Artigo: Qualidade do ensino de medicina é a chave

ELEUSES PAIVA - Médico nuclear

O tratamento simplista de problemas complexos é muito sedutor. Faz crer que, para um dado problema, existe aquela solução única, um ato singular tão eficiente e poderoso que colocará todo desarranjo em ordem, agradará a todos e pacificará quaisquer dificuldades de uma vez por todas. A realidade, claro, não é tão simples assim.

Um desses problemas é a necessidade ou a desnecessidade de abrir mais vagas e cursos de medicina no Brasil. A questão passa por fatores como o número absoluto de médicos no país. O levantamento "Demografia Médica no Brasil — 2020", resultado de uma pesquisa feita pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), diz que o país, naquele ano, tinha 502.475 médicos. Esse total representa um aumento de 180 mil em relação a 10 anos antes. Isso é muito? A média brasileira de médicos por mil habitantes, diz o documento, era de 2,4. Em países como Áustria (5,7 por mil) e Grécia (6,1) por exemplo, a situação é mais confortável, por assim dizer. Não há que se falar, portanto, em alguma carência extrema de médicos no país.

Então, põe-se a questão da distribuição — e aí percebe-se de fato um problema. O mesmo documento aponta a forte desigualdade entre as regiões Norte e Nordeste e as demais. A concentração desigual nos grandes centros urbanos se dá por razões que vão desde a presença de infraestrutura sanitária até a oferta maior de oportunidades, com remunerações mais altas, passando por condições de trabalho e outras mais.

E há a questão da qualidade em si dos cursos. Não é grande o histórico de penalizações de instituições que não obtenham as notas mínimas do Ministério da Educação (MEC). Cursos de medicina exigem grandes investimentos em estrutura de ensino, nem sempre realizados pelas escolas e faculdades. Instituições sem capacidade de prestar a formação adequada aos alunos que chegarão ao mercado como profissionais com formação deficitária — e seria ocioso dizer que isso é um risco inaceitável para a saúde da população.

O pensamento simplista está em achar que desequilíbrios se corrigirão assim que mais vagas e cursos de medicina no país forem abertos. Mas o Brasil tem hoje, aponta o CFM, 367 escolas de medicina — e dessas, quase sete em cada 10 são privadas. Trazer mais médicos para o mercado de trabalho terá apenas duas consequências: a mais imediata será saturar ainda mais a oferta de profissionais nos grandes centros - e disso decorre a segunda: a acentuação ainda maior da disparidade na distribuição deles pelo país.

Outro item fundamental na discussão tem de ser a qualidade dos cursos hoje existentes. Os currículos das escolas de medicina precisarão se adaptar para o cenário pós-pandemia dos cuidados de saúde. A telemedicina, por exemplo, deixou de ser um serviço de pouca expressão antes da pandemia para crescer na preferência de pacientes e médicos. Pesquisa recente da Associação Paulista de Medicina(APM) e da Associação Médica Brasileira (AMB ) mostrou que cerca de dois terços dos entrevistados aprovam o atendimento remoto.

E há a questão do erro médico. Levantamento do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar da Universidade Federal de Minas Gerais (Iess-UFMG), com base em dados de 182 hospitais brasileiros coletados entre 2017 e 2018, mostram que, no país, 1,3 milhão de pessoas sofre com algum efeito colateral resultante de negligência ou imprudência no tratamento médico. Outro dado alarmante: cerca de 55 mil pessoas morrem por ano devido a erros médicos.

Ao menos, talvez isso se possa dizer de certo: se a qualidade das escolas de medicina for aferida com rigor, e o conhecimento adquirido pelos alunos for verificado periodicamente (e também com rigor), ficará cada vez mais estreito o espaço para erro causado por falta de perícia, negligência ou outra má-conduta profissional. Sempre, e infelizmente, haverá espaço para o imponderável — mas é preciso restringi-lo ao máximo.

Argumenta-se que barrar novos cursos e a ampliação de vagas tem caráter corporativista: seria uma forma de impedir que os salários sejam reduzidos pela saturação de profissionais. Isso, no entanto, é secundário: o profissional da medicina tem nas mãos a saúde do paciente. A este é devido o melhor da capacidade do médico, seja porque o cidadão tem direito ao serviço de saúde de qualidade, seja porque o Juramento de Hipócrates determina "nunca causar dano ou mal a alguém". Primeiro deve-se garantir que o ensino médico será o melhor possível, para formar os quadros mais capacitados a lidar com a saúde. Em seguida deve vir a distribuição mais equitativa dos profissionais. Só então fará sentido pensar em aumentar o número de médicos no Brasil.

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