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Artigo: Pedalada nos precatórios e goteira nos auxílios

FERNANDO FACURY SCAFF - Advogado, é professor titular de direito financeiro da Universidade de São Paulo

Faz menos de um ano, você deve se lembrar. O ministro Paulo Guedes mencionava que havia surgido um meteoro no horizonte que iria destroçar o teto de gastos. Tratava-se de uma emergência fake, pois o Ministério da Economia é avisado com bastante antecedência pela Advocacia Geral da União sobre a dinâmica do pagamento das dívidas judiciais — os precatórios a serem pagos a quem gastou quase uma eternidade litigando contra a União. O montante que supostamente surpreendeu o ministro, que tinha os olhos voltados para os céus, era de R$ 30 bilhões. Você recorda?

A solução adotada, depois de embates no Congresso, foi aprovar não apenas uma, mas duas emendas constitucionais, a 113 e a 114, criando um mecanismo financeiro extremamente perverso que adiou o pagamento da parcela dos precatórios que não coubesse no teto de gastos. Daí surgiu um comprometimento enorme para os futuros exercícios financeiros, pois, a cada ano, o que não couber no teto de gastos será pago no exercício seguinte, com o acúmulo do que sobrou (isto é, ultrapassou o teto). Tal procedimento gera o efeito bola de neve, uma vez que a cada ano serão pagos, de forma cumulativa, o estoque de precatórios daquele exercício, com o acúmulo dos anos anteriores — o que se caracteriza um inferno para os credores, que jamais saberão quando receberão.

A rigor, o que foi feito pelo ministro Guedes, com o inestimável auxílio do Congresso, foi uma pedalada fiscal, pois passou parte do pagamento dos precatórios, despesa corrente, para exercícios posteriores, e daí seguidamente, em uma rosca sem fim, ano a ano.

Agora surge outra surpresa, que revela o governo novamente olhando os céus — embora não tenha sido denominada de meteoro, apareceu no horizonte a estrela vermelha do PT e, com ela, o receio de uma derrota eleitoral. Falo da PEC Kamikaze, nome atribuído pelo próprio Paulo Guedes meses atrás, antes de mudar de ideia e a apoiar, passando a ser conhecida como PEC Eleitoral. A PEC concede um conjunto de auxílios à população carente e grupos de apoio do presidente há menos de 90 dias das eleições. O montante do gasto está estimado em mais de R$ 41 bilhões.

O destaque é que, em vez de invocar o teto de gastos e afastar o pacote eleitoral, afasta-se o teto, nele criando uma gigantesca goteira para esse gasto de R$ 41 bilhões no mesmo ano em curso. Afinal, as eleições estão na porta, e o próximo exercício financeiro está além da terra plana, para um futuro governo incerto e não sabido. Estamos em um programa de auditório: vale tudo por dinheiro, isto é, pela reeleição.

Isso lembra uma velha máxima política: aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei. Atualizando o ditado em termos financeiros: aos amigos, goteiras no teto; aos inimigos, pedaladas. A conta não fecha. Além dos R$ 41 bilhões em goteiras da PEC Eleitoral, existe mais de R$ 100 bilhões em excesso de arrecadação, aumento do Auxílio Brasil, redução da arrecadação dos tributos federais sobre os combustíveis, perdão das dívidas do Fies, Vale-Gás, isenção do IPI para taxistas, ampliação do crédito para pequenas e microempresas, sem falar nos R$ 16,5 bilhões de emendas de relator (RP9) e das emendas PIX, dirigidas diretamente aos municípios — tudo isso importa em mais de R$ 300 bilhões. Para isso foi encontrado dinheiro, mas não para pagamento dos precatórios.

O pior é que nem estava claro que o Poder Judiciário era o inimigo, pois são suas decisões transitadas em julgado que estão sendo pedaladas. Agora está. E os credores desses precatórios acabam espremidos entre o mar e as pedras, sem ter a quem apelar. O que resta fazer? A resposta está em uma antiga fábula, na qual um espertalhão tece uma roupa de tecido invisível para o orgulhoso rei, e, quando este desfila para os súditos sua nova vestimenta, uma criança grita que o rei está nu. Nos resta gritar como a criança. Será que o Judiciário acordará com os gritos?

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