RACISMO

Artigo: Construção da sociedade antirracista

Correio Braziliense
postado em 16/07/2022 06:00
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

LÚCIA HELENA NEVES - Advogada, membro da Comissão da Igualdade Racial da OAB/DF

"O valor do ser humano está no seu senso de justiça e de retidão" — Mokiti Okada. A saída do chamado "lugar do negro" não decorreu da meritocracia para mim, mas sim, da postura intransigente de pessoas que, movidas pelo espírito de retidão, procuraram ser justas. Primogênita de sete crianças negras, influenciada pelas revolucionárias ideias de uma mãe cosmopolita — ex-proprietária de tinturaria, vendida ao casar-se com um trabalhador rural e mudar-se para o campo — fui a primeira pessoa preta a ocupar alguns espaços antes destinados a pessoas não descendentes das escravizadas no Brasil. É história de superação.

Na zona rural, começamos a trabalhar em tenra idade em casa, nas plantações, como cuidadores de animais e, não raro, como as crianças que "brincavam" com os patrõezinhos. Todavia, meus irmãos e eu somos parte de um grupo privilegiado. Nossa mãe — que havia estudado até a terceira série primária — nos alfabetizou, e, junto com nosso pai, viam no estudo a única possibilidade de negros escreverem histórias com final feliz. Ou quase.

Nossos pais são filhos de profissionais cujas trajetórias foram deliberadamente apagadas da história. Meu avô paterno era professor e agricultor e meu avô materno foi o primeiro contador do município em que nasci e realizava as escrituras contábeis dos comércios e fazendas locais. Foram invisibilizados e apagados da história oficial.

Empenhei-me para ser a melhor aluna. Leitora voraz, lia de tudo. Antes de completar 15 anos de idade, havia lido a Bíblia duas vezes. Lia escondido jornais, revistas e enciclopédias dos patrões. Li a coletânea Sítio do Pica-pau Amarelo e decepcionei-me, pois os personagens negros eram apenas bonachões e analfabetos, sem riso e sem choro pelas próprias histórias e, portanto, no máximo, coadjuvantes. E eu buscava protagonistas.

Apoiada pelo núcleo familiar, ingressei no circuito das universidades federais aprovada em vestibulares de ampla concorrência para cursos dominados pelas elites. Sempre trabalhei enquanto estudava. Com foco na linha de chegada, ora silenciava meus gritos de revolta contra os ataques racistas ora os enfrentava. Assim, meus resultados decorrem da convergência das forças da minha ancestralidade e de todos os heróis e heroínas afrodescendentes conhecidos e anônimos que não fugiram das lutas antes de mim. Fui aprovada em sucessivos concursos públicos e mudei vidas. Mas não consegui assumir postos de poder. Fui barrada pelo limite invisível quase intransponível para pessoas pretas.

Essa barreira invisível é o racismo estrutural e estruturado para privilegiar determinados indivíduos ou grupos. Leciona o jurista Adilson Moreira que os privilégios dos grupos decorrem de ações intencionais, a discriminação direta, reprovada pela maioria das pessoas e pelos tribunais. Mas é alimentada principalmente pela discriminação indireta, não alcançada pelo aumento das legislações protetivas de pessoas ou de grupos inferiorizados, porque pessoas detentoras de poder público ou privado podem permanecer comprometidas com sistemas que adaptam práticas discriminatórias aos propósitos de manutenção de privilégios. Então, precisamos falar do racismo estrutural — o apartheid brasileiro — que naturaliza o surreal exclusão da maioria dos filhos do Brasil.

E a vida imita a arte no necessário filme Medida provisória. Nele, Adriana Esteves está na pele das tantas brasileiras autodeclaradas não racistas, protagonistas da discriminação indireta no cotidiano. Ela dá vida àqueles servidores públicos legalmente obrigados a dispensar tratamento igualitário aos contribuintes negros, mas que escolhem ficar sob o guarda-chuva do racismo estrutural e calam suas consciências quando votações prejudiciais ao interesse desses indivíduos ou grupos são realizadas na calada da noite ou quando são criadas políticas públicas para atender interesses privados perpetuadores das exclusões.

Não busco anuência unânime a essas críticas. Tampouco a intenção é convencer indivíduos cujo senso de justiça e retidão é tão rudimentar que entendem seus privilégios como méritos pessoais. Dirijo-me a pessoas conscientes do papel social que lhes cabe como agentes transformadores, pois estamos em ano eleitoral e podemos escolher ser antirracistas e votar em indivíduos cujas ações incluem seres humanos. Afinal, repetir denúncias e críticas não são "mais do mesmo", mas estratégia de enfrentamento.

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