MARCELO COUTINHO - Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Em 2 mil anos, a primeira e a última vez que o Oriente influenciou o mundo ocidental com uma ideologia política foi nos anos 1960. Enquanto Mao Tsé-Tung prendia, humilhava e matava milhares de artistas e intelectuais em nome da sua revolução cultural, jovens de Paris à Amazônia andina lutavam com admiração pela nova sociedade implementada à força na China. Esses estudantes e até pensadores mais experimentados no Ocidente defendiam com veemência substituir as suas recentes democracias pelo regime totalitário socialista.
A ideologia de Mao nasceu na verdade em berço europeu. Não era, portanto, um ideário genuinamente oriental. A China, e antes dela a Rússia da União Soviética, de quem depois se tornou inimiga, constituíram as próprias versões na prática do marxismo vulgar para além das fronteiras ao leste. Quando Karl Marx escreveu seus ideais revolucionários no século 19, não havia ainda a democracia que só conhecemos após a Segunda Grande Guerra, com voto feminino universal, plena liberdade de contestação, direitos humanos e estados de bem-estar social. Não se pode assim culpar Marx pelos erros de intelectuais e jovens simpatizantes de governos autoritários na segunda metade do século 20. O grande teórico da esquerda tem pouco a dizer sobre a democracia que não conheceu.
Mesmo que Marx pudesse mudar de opinião diante da social-democracia, fica uma pergunta inquietante: por que, tempos depois, muitas pessoas, inclusive supostamente bem esclarecidas, ainda almejavam com tanta paixão trocar a democracia pelo socialismo? Minha resposta é que, até hoje, poucos sabem o que é a democracia, fundamentalmente um regime de acesso ao poder por regras eleitorais abertas e garantias de oposição, e não um modelo socioeconômico. Muitos confundem democracia com desenvolvimento solidário, capaz de solucionar todos os problemas sociais. E a verdade é que a democracia ajuda a constituir uma sociedade melhor porque abriga as diferenças dentro dela, mas não garante que todos sejam realmente iguais. Nenhum regime pode assegurar isso.
Os jovens de 1968 que protestavam nas ruas inspirados nos ideais revolucionários do sanguinário Mao não eram psicopatas em sua imensa maioria. Eram apenas ingênuos em busca de mais igualdade, embora houvesse entre eles também os oportunistas. O regime de Mao deu em fome e desespero. A própria China abandonou depois o socialismo e se tornou uma potência com reformas que a tornaram capitalista. Por sua vez, os regimes europeus constituíram a mais fabulosa experiência social já vista na humanidade, sem miséria e com muita educação e liberdade. Isso durou décadas, mas na grande história foi apenas uma vírgula de bem-estar num mundo de sofrimento e violência.
O regime democrático é baseado na competição (nem sempre justa) entre interesses e valores divergentes encontrados na sociedade, preservando sempre os direitos das minorias. Portanto, a democracia abriga bem o princípio da solidariedade sem, no entanto, confundir-se com ele. São coisas distintas, e por isso mesmo ainda vemos tanta insatisfação com o mais novo regime político da humanidade. E tão pouco importa se é representativa ou participativa.
Sempre vai haver competição se for realmente uma democracia plural de pensamentos contrários. Nada disso impede, é claro, que haja uma extensão do conceito de modo a incluir também a democratização do acesso a bens e serviços. Foi justamente isso que a social-democracia fez, em boa medida pressionada pelos mesmos jovens iludidos com o socialismo atrás dos muros.
Os anos passaram, e muitas democracias não conseguiram sequer chegar perto do modelo europeu, que, aliás, começa a naufragar em dificuldades materiais. A democracia sem crescimento econômico é um caldeirão. Quando se tem dinheiro é mais fácil organizar as diferenças. Todo mundo quer ver seus problemas resolvidos, e se queixa da democracia quando não atende as enormes expectativas criadas em torno dela.
As insatisfações se acumulam eleição após eleição, precisamente porque a justiça e a solidariedade não são alcançadas. E desse modo renascem os ovos de serpente, ou de dragão. Movidos pelo antiocidentalismo ou por um saudosismo conservador, muitos jovens de novo se encantam com regimes autoritários à esquerda e à direita. A admiração de grupos por Putin é um exemplo explícito da unidade de hoje entre os extremos. Um reacionário com passado socialista em Moscou.
A verdade é que a democracia não pode tudo. Não foi sequer pensada para ser perfeita, pois a própria ideia de perfeição foi bastante antidemocrática ao longo do século 20. Resta, então, saber o que faremos com esse conjunto de instituições de agora em diante. Uma coisa que sabemos é que não se sustenta sem um poder internacional favorável. Mesmo o líder contemporâneo das democracias, os EUA, foi capaz de ir contra as liberdades em determinados momentos da Guerra Fria, que está agora sendo reestabelecida em outros termos.
Imagine o que pode fazer com os regimes democráticos pelo mundo uma grande potência autoritária em ascensão. Muita coisa mudou, mas a luta pelo poder continua. A democracia é uma fórmula de administrar pacificamente essa luta. Estabelecer um regime cínico onde se supõe falsamente que todos são iguais e comungam do mesmo objetivo a despeito do poder é o maior veneno que a democracia pode engolir. A democracia precisa reconhecer os seus limites e avançar.
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