RODRIGO BADARÓ - Advogado, é conselheiro nacional do Ministério Público, de Proteção de Dados (ANPD) e diretor do Instituto Brasil Estados Unidos de Direito Comparado
ERICK BILL VIDIGAL - Advogado, doutor em direito (PUC/SP), professor do UniCeub e escritor
"Este é um dia triste para a Corte e para o país." Foi assim que o presidente Joe Biden resumiu o sentimento da maioria dos cidadãos norte-americanos ao tomar conhecimento da nova decisão sobre o aborto, proferida pela Suprema Corte dos EUA no último dia 24.
No livro Suprema Corte dos Estados Unidos: principais decisões, João Carlos Souto tece aprofundado estudo do caso Roe x Wade, que levou a Corte, em 1973, a considerar inconstitucional a lei do Texas sobre a matéria, ao entender que o aborto se inseria no direito constitucional à privacidade. A reação conservadora, pontua o professor, deu-se em 2003, com o Partial-Birth Abortion Ban Act, que tornou ilícito o aborto realizado a partir do segundo trimestre da gravidez. Questionada judicialmente, a lei foi considerada constitucional em 2007, sendo reconhecida a legitimidade do governo para legislar sobre o assunto.
Sem entrar na discussão valorativa sobre o aborto, tem-se que a decisão de 24/6 não o proibiu, mas, sim, devolveu ao Legislativo o papel de decidir sobre o tema. Nas palavras do Justice Samuel Alito, relator do caso: "É hora de acatar a Constituição e devolver a questão do aborto aos representantes eleitos pelo povo. [...] A Constituição não proíbe os cidadãos de cada Estado de regularem ou proibirem o aborto. [...] Nós hoje revertemos aquelas decisões e devolvemos a autoridade ao povo e a seus representantes eleitos".
É certo que, em tese, é muito mais seguro considerar inserida na Constituição a proteção de uma liberdade individual, pois dificulta "aventuras" decorrentes de alterações significativas nos quadros do Legislativo. Contudo, o que muitas vezes não se considera é o grave risco de retirar dos representantes populares o poder de decidir sobre tais liberdades, aceitando que autoridades vitalícias não eleitas exerçam tão relevante atribuição. Ainda que alguns possam achar o parlamento horrível, vivemos em uma democracia, que, como dizia Churchill, "é o pior dos regimes, mas não há nenhum sistema melhor que ela".
No Brasil, a temida insegurança jurídica gerada pelo fenômeno do ativismo judicial tornou comum encontrar magistrados que ignoram a legislação processual, criam regras jurídicas, desrespeitam contratos e prerrogativas da advocacia e até mesmo impedem crianças de 11 anos de exercer o direito legal ao aborto quando vítimas de estupro, sendo poucos os que compreendem que seu verdadeiro papel não é criar um mundo novo, mas solucionar conflitos [a afirmação não é nossa, mas do Justice Frankfurter].
Se é verdade que a natureza objetiva da Constituição dos EUA demanda sempre interpretações, a nossa Carta Magna é detalhada e literalmente clara, não justificando os malabarismos que convertem a vontade do legislador em simples sugestão. A moralidade administrativa e princípios que não encontram respaldo em qualquer fundamento democrático dão lugar a decisões que, corriqueiramente, confrontam políticas públicas implementadas pelo Executivo e Legislativo, e a outras que chegaram ao extremo de impedir presidentes da República de escolherem seus ministros.
Voltando ao aborto, é evidente que, em uma Constituição que dispõe até mesmo sobre o Colégio Pedro II no Rio de Janeiro, sua omissão se deu por opção consciente do constituinte originário. Nesse contexto, o cuidado e a autocontenção devem ser a regra, sem crença em dons iluministas e convicções ideológicas, buscando sempre evitar o conflito entre os poderes, pois os não eleitos acabam decidindo o destino de milhões de brasileiros que já escolheram seus representantes pelo voto.
Por certo que os direitos das mulheres e de outras minorias precisam, sim, ser defendidos e concretizados, mas jamais criados por tribunais e juízes. O alerta perfeito se tem nos versos do poeta Eduardo Alves da Costa: "Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada".